O governo de Bolsonaro suspendeu todos os exames de genotipagem de HIV e de hepatite C, procedimentos considerados fundamentais para pessoas que vivem com os vírus.
O exame é de extrema importância para determinar a combinação de medicamentos que será administrada aos pacientes.
A determinação de suspender o serviço consta de uma nota informativa, divulgada em 2 de dezembro. O documento é do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde. A nota é assinada por Angélica Espinosa Barbosa Miranda, diretora substituta do órgão.
Na data anterior à divulgação, o Ministério da Saúde celebrou o Dia Mundial da Luta Contra a Aids. A pasta comemorou a primeira redução em uma década no número de casos notificados, além da queda no índice de mortalidade da doença.
“Essa redução se deu muito claramente pela testagem precoce e pela disponibilidade e oferta contínua [de medicamentos] para todos os pacientes diagnosticados”, disse na ocasião Arnaldo Medeiros, secretário de Vigilância em Saúde do ministério.
Agora, o documento da pasta justifica a interrupção nos exames devido ao término do contrato para a prestação dos serviços. Ele não foi renovado a tempo.
A pasta explica que os exames de genotipagem eram realizados na rede pública por uma empresa, a Centro de Genomas, desde 2015. O contrato, no entanto, venceu em novembro deste ano.
O pregão eletrônico para contratar novamente o serviço terminou em outubro, um mês antes do término do contrato. No entanto, o processo foi dado como fracassado, pois a empresa ganhadora não enviou toda a documentação exigida.
“Considerando que não há cobertura contratual para manutenção de coletas e processamento das amostras, este departamento informa que as coletas estão temporariamente suspensas, mas com expectativa de retomada do serviço a partir de janeiro de 2021. Caso seja possível retomar antes dessa data, um novo comunicado será publicado”, afirma a nota.
A nota informativa diz que, no caso de pacientes vivendo com HIV/Aids, os exames de genotipagem serão coletados e processados apenas para crianças com menos de 12 anos e gestantes.
Os casos de pacientes fora desse grupo e que necessitem de troca urgente de terapias deverão ser discutidos individualmente com as câmaras técnicas de cada região.
A nota informativa não trouxe alternativas para as pessoas diagnosticadas com hepatite C.
Um novo documento, emitido dias depois, afirma que deixou de ser necessária a realização do exame de genotipagem para a solicitação de tratamento para pacientes de hepatite C que não fizeram uso prévio de remédios antivirais.
O documento traz então a orientação do uso de opções terapêuticas para esses pacientes que não fizeram uso dos antivirais.
Não é possível mensurar quantas pessoas serão afetadas pela falta dos exames. No entanto, números do próprio ministério apontam que cerca de 900 mil pessoas que vivem com o HIV estão em tratamento no Brasil.
Especialistas apontam que o exame de genotipagem é fundamental para os pacientes que vivem com essas doenças, em especial os infectados pelo HIV.
“Em relação aos infectados pelo HIV, quando se suspeita que o vírus está resistente a um antirretroviral, é preciso o exame para que se possa criar um novo esquema de tratamento, uma nova combinação”, afirmou Rico Vasconcelos, infectologista e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP.
“É mais preocupante, porque pode ser uma pessoa com HIV que está em um momento mais crítico. São pessoas que não conseguem zerar a carga viral sem a realização do exame”, disse.
Por outro lado, os exames para as pessoas que vivem com hepatite C são realizados antes do início do tratamento, para definir qual será a combinação inicial.
“O vírus da hepatite C apresenta seis genótipos diferentes, então um medicamento pode funcionar para um e não funcionar para o outro. Por isso o exame é necessário antes do início do tratamento”, afirmou Luciano Goldani, infectologista e professor da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul).
A suspensão dos exames de genotipagem provocou reações negativas.
A Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids divulgou uma nota neste domingo (6), na qual critica o governo federal por ter retardado a compra, principalmente em um ano tumultuado por causa da pandemia do novo coronavírus.
“Esse exame é fundamental na estratégia para o tratamento tanto para o HIV como para o HCV, pois quando a pessoa está resistente e necessita da genotipagem para iniciar nova combinação encontra-se em um estado de extrema vulnerabilidade às infecções oportunistas e não pode ser prejudicada pela demora ocasionada por entraves meramente burocráticos”, afirma o texto.
A Rede ressaltou que não é a primeira vez que os exames são interrompidos e acusa o governo de destruir conquistas na área.
A nota da rede afirmou que as pessoas que convivem com a doença antes eram vistas como parceiras e agora são despesas.
“A RNP+Brasil acha um absurdo que o Ministério da Saúde tenha demorado para lançar o edital de compras dos kits e não podemos aceitar que isso prejudique o tratamento das pessoas, pois sabemos que o ano de 2021 será o ano que veremos os impactos da Covid-19, tanto nos pacientes de HIV como nos de HCV, e a falta desses exames pode agravar ainda mais esses impactos”, afirma o texto.
O secretário nacional executivo da Rede, Alisson Barreto, afirmou que o atual governo promove uma política de desmonte em relação às conquistas para a população que vive com HIV.
Ele citou que as mudanças começaram com a troca no nome do departamento que trata de HIV, cujo nome Aids foi retirado.
“Isso não é apenas um detalhe. Isso enfraquece a nossa luta em termos político, para avançar a condição de vidas das pessoas que vivem com HIV”, disse.
Barreto também citou a mudança nas regras para realização de exames de carga viral para esses pacientes. Anteriormente, a decisão cabia unicamente aos médicos, que solicitavam nos casos que consideravam adequados. Agora, no entanto, há uma limitação de um exame por ano.
O Ministério da Saúde foi procurado na noite de domingo, mas não respondeu aos questionamentos até a conclusão desta reportagem.
A pasta é comandada pelo general Eduardo Pazuello, que assumiu interinamente em maio, sendo efetivado quatro meses depois.
Um dos principais argumentos do governo ao designar o militar para a pasta é sua expertise em logística, que seria fundamental no combate à pandemia do novo coronavírus, para adquirir e distribuir insumos para estados e municípios.
*Com informações da Folha
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