O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União), compareceu à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em maio na condição de convidado. Em uma sessão marcada por discussões ríspidas, ele afirmou, sem meias palavras, que assentamentos do movimento no estado eram usados para o tráfico de drogas.
“As pessoas que faziam tráfico de droga se resguardavam nesses falsos assentamentos”, disse Caiado. O governador chegou a prometer à comissão os dados que comprovariam suas afirmações, o que nunca aconteceu.
Os dados oficiais sobre apreensões de entorpecentes ilegais em Goiás, no entanto, são taxativos: Caiado mentiu ao afirmar que há tráfico de drogas em assentamentos do MST. O Brasil de Fato obteve, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), dados de todas as apreensões de drogas realizadas em Goiás entre janeiro de 2019 e março de 2023. Nenhuma grande apreensão de drogas aconteceu no estado em áreas relacionadas ao movimento.
Em pouco mais de cinco anos e 23 operações em assentamentos, foram encontrados pouco mais de 300 gramas de drogas – a maior parte de maconha. As quantidades são ínfimas e, em todos os casos, se enquadram no que especialistas classificam como quantidade para uso pessoal. Em comparação, o estado apreendeu quase 200 toneladas de entorpecentes em outros locais no mesmo período.
O depoimento
No final da tarde do dia 31 de maio, a principal notícia de alguns dos maiores veículos de comunicação do país era a de que o MST havia sido acusado de se associar ao narcotráfico em Goiás. A afirmação foi por Caiado na CPI do MST, onde afirmou que foram feitas “várias apreensões de drogas” em assentamentos goianos.
“As invasões foram usadas em muitos estados, primeiro, para ser ali ponto onde nem a polícia podia entrar (…) onde as pessoas que faziam tráfico de droga se resguardavam nesses falsos assentamentos de ocupações que eram feitas para dali levar adiante aquilo que era o tráfico de drogas”, afirmou Caiado aos deputados federais que integram a comissão. O governador insistiu na tese.
“O que eu coloquei eu repito: várias apreensões de drogas no meu estado de Goiás foram feitas quando eu cheguei ao governo em acampamentos que existiam do MST. Deixando bem claro o assunto: várias prisões de drogas foram feitas em acampamentos do MST, certo? Essa é a verdade que está nua e crua”, sentenciou Caiado.
O deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO), integrante da CPI, chegou a comemorar o fato de que Caiado prometeu enviar à comissão dados sobre apreensão de drogas em assentamentos do MST. “Vamos mostrar que há, sim, não só consumo, mas tráfico de drogas dentro desses ambientes, porque se torna um Estado paralelo, que não permite que a polícia entre”, afirmou Gayer.
Até o fechamento desta matéria, mais de dois meses após o depoimento, Caiado não havia enviado os dados à CPI.
Toneladas x gramas
O Brasil de Fato obteve os dados de apreensão de drogas em Goiás do início da gestão de Caiado, em 1º de janeiro de 2019, até dia 1º de março deste ano. Os números escancaram uma discrepância entre o que narrou o governador na CPI e a realidade exposta pelas operações policiais goianas.
No período, a Secretaria de Segurança Pública (SSP-GO) registrou 23 operações em assentamentos do MST, sendo oito em 2019, três em 2020, uma em 2021, oito em 2022 e três em 2023.
Ao todo, Goiás apreendeu 16,5 toneladas de cocaína, durante a gestão de Caiado. No mesmo período, em áreas do MST, foram apenas encontradas apenas 23,04 gramas da substância. As forças policiais encontraram a quantidade em quatro operações, realizadas em três assentamentos.
De acordo com a SSP-GO, as polícias do estado encontraram 1,5 tonelada de crack no estado no mesmo período. Em áreas do MST, em quase cinco anos, apenas 87,68 gramas, apreendidas em quatro operações, nos assentamentos.
No governo Caiado, Goiás apreendeu 181 toneladas de maconha em todo o estado. Dessa quantidade, apenas 191,5 gramas em áreas do movimento, divididas em quatorze operações, em onze assentamentos.
“Caiado deveria ser investigado por calúnia”
A legislação brasileira não estabelece parâmetros para a distinção entre usuário de droga e traficante. O Instituto Igarapé produziu, em 2015, a nota técnica Critérios objetivos de distinção entre usuários e traficantes de drogas – cenários para o Brasil, assinada por advogados, juízes, professores, psicanalistas e defensores públicos, que se tornou a referência sobre o tema.
No documento, o instituto explica que a Lei de Drogas (nº 11.343), “em seu art. 28, § 2º, ela elenca oito critérios legais de distinção entre o porte para uso próprio e o tráfico de drogas: a quantidade e a natureza da substância apreendida; o local e as condições da ação; e as circunstâncias sociais e pessoais, a conduta e os antecedentes do agente. Juntos, formam um conjunto de critérios em sua maioria subjetivos”.
Esta subjetividade, explica o Igarapé, cooperou para o encarceramento em massa no país. Para cooperar com a distinção entre usuário e traficante, o instituto propôs uma tabela de medidas, baseada em legislações internacionais e nos padrões nacionais de consumo.
Na tabela do Igarapé, há três cenários. Para maconha, as quantidades per capita, que caracterizariam consumo próprio, são 25 gramas, 40 gramas e 100 gramas, respectivamente. No caso da cocaína e do crack, 10 gramas, 12 gramas e 15 gramas.
“Indicamos que o mais adequado para a realidade brasileira é uma quantidade de referência fixa entre os cenários 2 e 3. Alguns signatários da nota, inclusive, rejeitam o primeiro cenário, pois temem que o seu efeito seja negativo. É preciso ser realista e responsável na apreciação dos cenários: alertamos o perigo da adoção de critérios muito baixos, incompatíveis com os padrões de uso brasileiros, que resultariam no efeito oposto ao pretendido. Critérios objetivos muito baixos aumentam o encarceramento e agravam a crise do sistema penitenciário”, justifica o instituto.
Emílio Figueiredo, advogado especializado em legislação sobre cannabis no Brasil e Lei de Drogas, condenou a tentativa de Caiado de criminalizar o MST. “Isso é uma apreensão muito pequena, muito baixa, é passível de ser considerado consumo próprio. Não tem chances de isso ser configurado tráfico de drogas, não tem como configurar finalidade de difusão ilícita. O governador deveria ser investigado por calúnia, pois sua acusação não tem qualquer base na realidade dos dados das apreensões”, afirmou.
Integrante da CPI do MST, o deputado federal Nilton Tatto (PT-SP) também criticou o governador goiano. “Caiado, como sempre fez, está a serviço dos latifundiários grileiros. Ele mentiu na CPI sobre combate ao narcotráfico em Goiás e ainda tentou criminalizar o MST. Lastimável que ele tenha ido a CPI para produzir fake news. Para esse tipo de político tudo vale para impedir a reforma agrária e apoio à agricultura familiar.”