Dallagnol e o presente da Cia

“Quem veio de Portugal para o Brasil foram degredados, criminosos. Quem foi para os Estados Unidos foram pessoas religiosas, cristãs, que buscavam realizar seus sonhos. Era um outro perfil de colono.”

Essas palavras foram proferidas por Deltan Dallagnol, Procurador da República e coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato, durante uma palestra realizada em uma Igreja Batista, em fevereiro de 2016.

A afirmação – esdrúxula, factualmente incorreta e preconceituosa – é um excelente exemplo da mentalidade colonizada que impera em amplos segmentos da sociedade brasileira, forjada a partir da mistura do complexo de vira-lata com a americanofilia inflamada e doses cavalares de puritanismo e crença no excepcionalismo americano.

No caso de Deltan, a frase talvez tenha uma alusão autobiográfica. Afinal, ele, um “cristão fervoroso”, também foi para os Estados Unidos em busca de um sonho – Deltan obteve seu mestrado na Universidade de Harvard em 2013. E a julgar por suas ações desde o ingresso no Ministério Público Federal (MPF), Deltan parece estar convencido de que a sua missão é servir a pátria dos “puritanos excepcionais”.

Deltan esteve à frente da força-tarefa da Lava Jato entre 2014 a 2021. A gigantesca operação, criada poucos meses depois do escândalo da espionagem praticada pelos serviços de segurança dos Estados Unidos contra empresas brasileiras, deixou um rastro de devastação nas contas públicas do Brasil.

Setores inteiros da economia nacional – sobretudo a construção civil e a indústria naval – foram completamente obliterados, deixando 4,4 milhões de pessoas desempregadas. Um estudo da PUC-SP estima que, em apenas um ano, a Lava Jato causou um prejuízo de mais de 142 bilhões de reais para o país – ao mesmo tempo em que ajudou as corporações estadunidenses a recuperarem mercados internacionais que as companhias brasileiras vinham conquistando.

A operação também teve consequências devastadoras na política nacional, ajudando a insuflar o golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff em 2016, servindo de justificativa para a prisão política de Lula em 2018 e ensejando a adoção de uma nova política econômica de subordinação inconteste aos interesses do capital financeiro e de renúncia a quaisquer resquícios de soberania nacional.

Não causa espanto, portanto, que os Estados Unidos tenham buscado estabelecer o que o procurador estadunidense Kenneth Blanco definiu como “um relacionamento íntimo que desprezava procedimentos formais” com os membros da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. E Deltan, como bom admirador da “pureza cristã” dos estadunidenses, serviu de ponte a esse inusitado intercâmbio, contribuindo secretamente com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ) e facilitando a investigação conduzida pelos estadunidenses contra as empresas brasileiras.

Em outubro de 2015, poucos meses após uma visita a Washington, Deltan recepcionou na sede do MPF uma delegação de 17 estadunidenses composta por procuradores do DOJ e agentes do FBI. As reuniões entre Deltan e os agentes internacionais duraram quatro dias e incluíram o repasse de informações sensíveis sobre as investigações envolvendo a Petrobras e outras empresas brasileiras. A colaboração jurídica é ilegal, uma vez que a troca de informações entre procuradores brasileiros e autoridades estrangeiras precisa ser autorizada pelo Ministério da Justiça – que, nesse caso, sequer foi informado sobre a visita.

Quando foi alertada sobre a possível colaboração irregular, a presidente Dilma Rousseff cobrou explicações do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que por sua vez acionou o procurador Vladimir Aras, então diretor da Secretaria de Cooperação Internacional (SCI). Aras, entretanto, não impediu que Deltan desse seguimento à colaboração com os agentes estadunidenses.

Em uma conversa com Aras, registrada no vazamento de mensagens enviadas via Telegram, o coordenador da Lava Jato explicou seu interesse na colaboração. Deltan queria repassar informações úteis aos investigadores estadunidenses antes que firmassem acordos domésticos de delação, de modo a assegurar parte dos recursos da multa que seria paga pela Petrobras ao governo dos Estados Unidos: “Nós estamos com pressa, porque o DOJ já veio e teve encontro formal com os advogados dos colaboradores (…). Isso atende o que os americanos precisam e não dependerão mais de nós. A partir daí perderemos força para negociar divisão do dinheiro que recuperarem.”

Fiel à concepção weberiana da ética protestante, Deltan mostrou seu tirocínio para os negócios. Após fornecer ilegalmente subsídios para que a justiça estadunidense punisse a Petrobras com uma multa bilionária, o procurador ainda tratou de articular um esquema para obter o controle sobre parte desse valor.

Dos 3,5 bilhões de reais que a Petrobras pagou ao governo dos Estados Unidos, 2,5 bilhões deveriam ser repatriados para o Brasil. Deltan, entretanto, tentou retardar a devolução dos valores, pois tinha um plano mirabolante para o destino dessa verba: usá-la para financiar uma fundação voltada ao “combate à corrupção”. Tal fundação ficaria sob tutela da força-tarefa da Lava Jato, que utilizaria o dinheiro para, por exemplo, pagar por palestras e cursos proferidos por autoridades envolvidas no “combate à corrupção”, tais como… os procuradores da própria força-tarefa da Lava Jato! “Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade”, escreveu Deltan para sua esposa, apresentando em seguida a expectativa de lucro em 2018: “Total líquido das palestras e livros daria uns 400 mil”.

O plano de usar dinheiro público restituído da corrupção para financiar um esquema privado de enriquecimento por meio de palestras sobre combate à corrupção foi muito criticado pela Procuradoria Geral da República e pelo Supremo Tribunal Federal, razão pela qual foi abortado. Deltan, entretanto, seguiu colaborando de forma fiel com os agentes estadunidenses.

O procurador incentivou os agentes de Washington a conduzirem depoimentos com delatores diretamente nos Estados Unidos, de modo a contornar as salvaguardas oferecidas pela lei brasileira. Também se ofereceu a pressionar os delatores a viajarem para os Estados Unidos para prestarem esclarecimentos sem salvo-conduto. Mensagens da Lava Jato recentemente liberadas à defesa de Lula mostram que, além de Deltan, o ex-juiz Sergio Moro também recebia orientações e trocava informações com procuradores estadunidenses.

Arquivos de conversas de novembro de 2015 apreendidas na Operação Spoofing mostram, por exemplo, Moro instruindo Deltan a entrar em contato com procuradores dos Estados Unidos para obter instruções sobre uma quebra de sigilo de um executivo ligado a um estaleiro que tinha contratos com a Petrobras.

A colaboração ilegal com autoridades dos Estados Unidos também foi fundamental para a construção das acusações da Lava Jato de Curitiba contra o ex-presidente Lula. Conforme registrado nas mensagens vazadas, a Lava Jato recebeu ilegalmente dos agentes estadunidenses evidências do “caso Odebrecht” que pudessem ser utilizadas para sugerir suposta participação de Lula em esquemas de corrupção, visando justificar a quebra do sigilo fiscal dos familiares do ex-presidente sem a observância do devido processo legal.

Esses procedimentos não apenas foram ocultados da defesa de Lula, como também sonegados dos autos originais do processo. As mensagens sugerem que o nome do Lula não surgiu como evidência durante o curso das investigações. Ao contrário: o presidente, aparentemente, já era um alvo pré-definido e a força-tarefa passou a buscar provas que servissem à construção de um caso, promovendo operações com o objetivo de convencer pessoas a implicá-lo em atos de corrupção através de constrangimento, ameaça de punição legal e uma miríade de métodos pouco ortodoxos.

Não por acaso, os membros da força-tarefa comemoraram efusivamente a ordem de prisão expedida contra Lula em abril de 2018. Conforme registrado nas mensagens eletrônicas, Deltan era um dos mais animados do grupo dos procuradores no Telegram: “Meooo caneco. Não dá nem pra acreditar. Melhor esperar acontecer”, escreveu o coordenador da Lava Jato, em resposta a uma mensagem da procuradora Laura Tessler afirmando que já iria iniciar a comemoração pela prisão de Lula – então líder das pesquisas de intenção de voto para a eleição que transcorreria em alguns meses. Deltan afirma que não estaria no país para comemorar, já que tinha viagem agendada aos Estados Unidos. E finaliza a conversa pontuando que a prisão do líder petista era um “presente da CIA”.

Os diálogos estão transcritos abaixo na íntegra:
5 de abril de 2018
Isabel Grobba: Moro manda prender Lula.
Deltan: Antes que MA ferre tudo
Deltan: Creio que devemos ficar quietos neste momento.
Laura Tessler: sim
Laura Tessler: totalmente quietos
Laura Tessler: até porque o mandado já disse tudo, kkkk
Isabel Grobba: Está no uol que já foi expedido o mandado.
Isabel Grobba: Deve se apresentar até as 17 horas de amanhã.
Paulo: Ficará na PF… Novo local de peregrinação em.Curitiba!
Deltan: Meooo caneco
Deltan: Não da nem pra acreditar. Melhor esperar acontecer
Julio Noronha: Exatamente!
Deltan: Temos que pensar a segurança oras próximas semanas
Laura Tessler: eu já vou comemorar hoje
Deltan: Ou melhor, Vcs têm, pq estarei fora do país kkkk
Paulo: Aqui tá tudo em segurança comigo, não se preocupe
Deltan: Kkkk
Laura Tessler: o problema é vc e CF…o resto é desconhecido
Isabel Grobba: E eu sou a querida!
Paulo: Deltan na Disney enquanto Lula está preso, isso vai ser noticia!
Paulo: Mas… Problema
Laura Tessler: é mesmo….pode ir lá dar as boas vindas pra ele, Isabel
Isabel Grobba: hehehe
Paulo: Não dá p mudar a vida por causa disso
Julio Noronha: No Brasil, mesmo uma decisão judicial amparada no decidido pelo STF, pode não acontecer, mesmo q entre a decisão e o cumprimento sejam apenas horas
Laura Tessler: agora já era…deixa de pessimismo
Julio Noronha: Só o Lula vai mudar de vida!
Welter Prr: Ele tem ate amanha para se apresentar. Depois é foragido
Welter Prr: Mas acho que ele vem
Laura Tessler: eles vão armar um bom teatro até amanhã para ele chegar “nos braços do povo”
Paulo: Com certeza vai fazer um comício as 16h, antes de se apresentar
Deltan: Presente da CIA

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Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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