Prefaciado pelo ex-Presidente Lula, o livro ‘Senza Respiro’ (‘Sem Fôlego’, edição em italiano, Altreconomia, em papel e ebook), do médico italiano Vittorio Agnoletto, tornou-se um catalisador do debate sobre a pandemia em seu país e na Europa, tendo rapidamente esgotada a primeira edição para levar o autor * ex-deputado europeu pelo Partito della Rifondazione Comunista e membro do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial –, a uma maratona de entrevistas, palestras e lives no circuito de rádios, jornais, universidades e redes sociais europeias.
Desde outubro quando a obra foi lançada, Agnoletto participou de mais de 60 apresentações; outras 70 estão programadas deixando sua agenda sem nenhuma noite vaga até o final de janeiro.
O sucesso tem lastro.
Agnoletto, 62 anos, foi membro da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento Europeu e é uma referência na saúde pública europeia como um dos fundadores e primeiro presidente da famosa LILA, a Liga Italiana de Luta contra a AIDS – engajamento que tem correspondência na atividade acadêmica: ele ensina “Globalização e Saúde Pública” na Universidade de Milão e foi diretor de cursos de formação em AIDS no Instituto Superior de Saúde em Roma.
Consagrado em sua profissão – foi eleito Médico do Ano na Itália nos anos 90 – ele também trabalhou em alguns projetos para a prevenção de drogas e doenças sexualmente transmissíveis junto à Organização Internacional para as Migrações, além de ser um membro ativo do Conselho Internacional do Fórum Social Mundial.
O FSM, por sinal, comemora vinte anos em janeiro de 2021 com uma edição planetária virtual (de 23 a 31 de janeiro https://wsf2021.net ), pautada pelos desafios de uma desordem neoliberal, da qual seu livro é um mirante engajado e arguto. Uma mesa com Lula e Agnoletto, entre outros, está sendo articulada pelos organizadores do evento.
(Lula e Agnoletto deverão debater sobre a pandemia no Fórum Social Mundial Virtual)
O convite de Agnoletto ao amigo Lula, como prefaciador de ‘Senza Respiro’, expressa a percepção fundadora do Fórum Social Mundial de que um ponto de mutação da história humana foi atingido. Ele convoca novas fronteiras de ação política para enfrentar as gigantescas massas de forças adversas que conectam o local ao global, o fastígio à penúria, a abundância à privação, enfim, fazem da beleza da vida e das promessas libertadoras da civilização um longo, incerto e exasperante amanhecer, que hoje responde pelo nome de pós-pandemia.
O livro se debruça sobre essas intersecções paradoxais ajustando a lente do microscópio no espaço para o qual convergem neste momento a intensidade avassaladora dos apelos da vida e as correntezas impetuosas das forças da morte, ou seja, os sistemas públicos de saúde postos em evidência na pandemia.
Subfinanciados em todo o planeta pela religião fiscal do Estado mínimo e, complementarmente, acossados pelo matrimônio da medicina com o lucro, simbolizam a rota de colisão mais ampla entre direitos universais requisitados pela sociedade e a captura da abundância gerada pelo capitalismo para as mãos longas da ganancia rentista.
Com entrevistas, relatos e depoimentos, Agnoletto investiga a tragédia que essa lógica instaurou na mais improvável, rica, mais povoada e mais influente região italiana, a Lombardia e, nela, na derrota mortífera de Bérgamo para um vírus.
Impossível não enxergar paralelos.
A Lombardia, que tem em Milão seu coração capitalista, é uma espécie de Estado de São Paulo do norte italiano, um centro fabril musculoso, com suas correspondentes casamatas do dinheiro organizado que se defende ali comme il faut: há 25 anos a região é governada pela direita italiana com seus poderosos escudos ideológicos, entre os quais as entidades das classes ‘produtoras’ e a influente mídia conservadora local e nacional.
Agnoletto usou seu prestígio e conhecimento para investigar como o sistema público de saúde desse fortim do establishment italiano permitiu que se instalasse em Bérgamo, a cerca de 100 kms de Milão, o cemitério mais dramático da pandemia na Europa.
Com mais de 64 mil mortos, a Itália é o epicentro europeu do novo coronavírus e a Lombardia seu pontão mais avançado. Como e por quê?
A universalidade dessa indagação encontra acolhimento no prefácio escrito pelo Presidente Lula que dá dimensão global aos relatos e questionamentos perfurantes de Agnoletto.
A dupla nos escolta por estruturas historicamente construídas, não ‘una cosa mentale’, como dizem os italianos, mas uma realidade reproduzida nas engrenagens que o dinheiro comanda em escalada insaciável que quanto mais acelera o motor da produção da riqueza mais vidas mastiga e menos direitos tolera.
A fila solene de setenta caminhões militares que percorreram a noite fria e chuvosa de Bérgamo, em 18 de março de 2020, ficará na memória como um dos testemunhos mais desoladores desse maquinismo desnudado e agigantado pela primeira pandemia do século XXI.
Enquanto o cortejo levava cadáveres infestados pelo vírus para sepultamento fora da cidade colapsada em sua estrutura de cemitérios e necrotérios, o capitalismo lombardo recusava-se a acionar a bandeira vermelha que desliga as máquinas, cerra as fábricas, decreta o lockdown, e enfim, liberta os braços e o resto dos corpos para descansar protegidos da catástrofe que gritava no ronco sepulcral dos caminhões em marcha contida.
O que se deu foi o oposto resultando na matança que os cemitérios locais não puderam dar conta.
(Cofindustria tentou minimizar a irradiação da morte a partir de Bérgamo)
Como mostra o livro e descreve o autor em entrevista exclusiva a Carlos Tibúrcio, da Carta Maior (leia abaixo), todo esforço da poderosa Cofindustria (a Fiesp local), associada a políticos herdeiros de Berlusconi, à máquina de desinformação conservadora e a algumas clínicas privadas que se recusavam a receber infectados em seus hospitais, foi no sentido de minimizar a irradiação da morte a partir de Bérgamo.
Uma campanha poderosa da associação empresarial lombarda reberverava urbi et orbi a ilusão do moto perpétuo capitalista indiferente à lida da morte a sua volta: ‘Bérgamo trabalha’; Bérgamo não para’, Bérgamo não fecha…’
Mas Bérgamo mata!
Impossível não remeter a versões desconcertantes da mesma cepa — a ‘gripezinha’ do Presidente brasileiro e o negacionismo de Trump — que resultaram nas duas maiores usinas de mortes da pandemia do planeta: EUA, com mais de 300 mil vítimas e o Brasil, com mais de 181 mil óbitos, juntos, a caminho de meio milhão de vidas perdidas.
A sôfrega insistência no retorno a uma ‘normalidade’ que, como se vê, a rigor nunca existiu, desdobra-se agora no turbulento ciclo de vacinação. A sofreguidão das expectativas ‘normalizadoras’ que a cercam obrigam a perguntar: ‘Em que medida um imunizante pode se transformar em passaporte para um passado abstraído de todas as arguições que lhe fazem o presente marcado pelo cheiro da morte que asfixia e turva o futuro ?
É disso que trata o prefácio escrito pelo ex-Presidente Lula em diálogo com o texto de Agnoletto.
‘A superposição de crises que se retroalimentam – do capitalismo neoliberal, do desequilíbrio ambiental e do descontrole sanitário –anuncia o esgotamento de uma época’, esquadreja o ex-presidente para advertir em seguida: ‘Não há precedente de uma volta ao ‘normal’ depois de uma ruptura dessa intensidade… (só) voltaremos a respirar plenamente (se) abrirmos a democracia às novas formas de participação e ação política que o século XXI nos cobra e propicia’.
(O passo seguinte da história está em aberto, avisa o ex-Presidente Lula)
No pós-guerra, nos anos 50, as forças progressistas souberam dar um nome à paz: ‘socialismo’, ‘bem-estar social’, ‘serviços públicos universais’, ‘cooperação’, ‘emprego’, ‘direitos’ etc.
Qual nome e que forças vão batizar o pós-pandemia? Vittorio Agnoletto e Luiz Inácio Lula da Silva alinhavaram os antecedentes da tormenta que escancara e agiganta as iniquidades intoleráveis de um epílogo inconcluso.
A travessia, porém, como demonstram as iniquidades escancaradas pela pandemia não se dará em águas de placidez suíça.
Não há marcha-à-ré na história, mas tampouco garantia de avanço: não existe vacina contra o passado. O passo seguinte da história está em aberto, avisa o ex-Presidente Lula.
Nesse lusco-fusco asfixiante que dá o título ao livro ‘Senza Respiro’ (‘Sem Fôlego’), o ex-presidente brasileiro capta ondas de um clamor que sua intuição política detecta em todos os quadrantes e contatos que cultiva no cenário global.
Ainda não é um nome para o pós-pandemia, mas é um sentimento forte, subjetivo e metabólico como se funde na pandemia; um sentimento de privação vertido das diferentes dimensões da existência submetidas a um esgotamento sistêmico que mostrou sua face mórbida e feia na doença ubíqua. Um sentimento que ecoa das esquinas e ruas do mundo sempre que elas se transformam, como tem acontecido com frequência cada vez mais estreita, em pulmões da história.
O que se ouve aí, anuncia Lula, é o som inconfundível de um mundo novo que pede para nascer: ‘Queremos respirar, queremos respirar, queremos respirar…’
*Saul Leblon/Carta Maior
*Leia a entrevista de Vittorio Agnoletto a Carlos Tibúrcio e o prefácio do ex-Presidente Lula ao livro ‘Senza Respiro’, inéditos no Brasil
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