Jamil Chade*
Com a tarefa de desmontar o legado do governo de Jair Bolsonaro, o ministro de Direitos Humanos, Silvio Almeida, começa nesta semana sua primeira missão internacional na esperança de recolocar o Brasil de volta como um dos principais atores e protagonistas da agenda de direitos humanos na ONU. A partir de segunda-feira, o chefe da pasta vai liderar a delegação brasileira no Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra, um dos palcos da “guerra cultura” conduzida pela extrema direita e ex-ministra Damares Alves, hoje senadora.
Silvio Almeida terá reuniões com uma dezena de ministros, relatores, sociedade civil e atores internacionais ao longo da semana, enquanto a cúpula da ONU não esconde a curiosidade por saber do novo ministro quais são suas prioridades e como o novo governo pretende lidar com desafios estruturais do país, como racismo, violência política e a desigualdade.
A mensagem do governo é de que o Brasil volta a ser parte dos esforços internacionais para o fortalecimento dos órgãos de direitos humanos e que é um parceiro confiável. Mas também se espera da delegação liderada pelo novo ministro que explique como irá desfazer os retrocessos implementados pela antiga administração.
Diagnóstico revela que Bolsonaro distanciou Brasil de posições históricas em direitos humanos
De fato, o informe preparado pela equipe de transição no Itamaraty já havia identificado o mesmo desafio. “Nos últimos quatro anos, o Brasil se distanciou de algumas de suas posições históricas em matéria de direitos humanos e do próprio mandato constitucional que determina que as relações internacionais do Brasil devem reger-se pelos princípios “da prevalência dos direitos humanos; da não-intervenção, do repúdio ao terrorismo e ao racismo”, apontou o diagnóstico realizado e que estava sendo mantido em sigilo.
“Desde a redemocratização, o país se pautava pela defesa da indivisibilidade dos direitos humanos, seletividade do uso político dessa também, atitude equilibrada e construtiva que favorecia a cooperação e o diálogo como ferramentas para a promoção e a proteção dos direitos humanos”, afirmou.
O documento também constata que “o governo Bolsonaro abandonou o protagonismo em agendas internacionais caras aos interesses de desenvolvimento nacional, como direito à saúde, direito à alimentação adequada, igualdade de gênero e racial, e enfrentamento a todas as formas de violência e de discriminação”.
“A mudança no discurso diplomático e a participação desastrada em alianças ultraconservadoras caminharam de mãos dadas com o desmonte de políticas públicas domésticas, em especial no que se refere a igualdade de gênero, direitos sexuais e reprodutivos e direito de minorias”, afirmou.
A gestão de Bolsonaro “também promoveu visão enviesada do direito à liberdade religiosa e de crença, que falhou no enfrentamento à discriminação religiosa, principalmente contra religiões de matriz africana”.
Reposicionamento em temas sobre gênero e defesa da mulher
Não por acaso, uma das primeiras medidas adotadas pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva neste aspecto foi retirar o Brasil de duas alianças estabelecidas por Bolsonaro com países ultraconservadores. Uma delas – a Declaração do Consenso de Genebra – visava impedir que organismos internacionais fizessem qualquer referência aos direitos de mulheres por acesso à saúde sexual ou direitos reprodutivos.
O Brasil também saiu de um grupo criado com Hungria e Polônia para a “defesa da família”, um argumento usado por governos reacionários para se opor ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Com o reposicionamento, o governo volta a adotar posturas tradicionais de defesa de uma ampliação de direitos para mulheres e meninas.
Sociedade civil e retomada de mecanismos de consultas
Nas reuniões internas na ONU, o governo brasileiro deve ainda anunciar que está retomando a criação de mecanismos de consultas com a sociedade civil. Ao longo do governo de Bolsonaro, Damares Alves esvaziou os conselhos que existiam na estrutura do estado para permitir que ongs e movimentos sociais pudessem dar suas opiniões e recomendações sobre políticas públicas.
A ONU chegou a denunciar o ato e alertou que tais medidas eram sinais de que o espaço cívico estava sendo reduzido. Alguns dos órgãos apenas continuaram a funcionar graças a decisões judiciais. Mas, mesmo assim, sua influência, papel e recursos foram abalados.
Genocídio indígena e visitas internacionais ao Brasil sobre racismo
Outro tema pendente na relação entre o Brasil e a ONU, em termos de direitos humanos, é a visita de relatores especiais ao país. O Brasil tem um convite aberto para que qualquer representante internacional possam fazer missões para examinar questões como racismo, indígenas ou situação das execuções sumárias pela polícia. Mas, para que uma viagem ocorra, o governo precisa concordar com datas e organizar um roteiro.
Durante o governo de Bolsonaro, apenas missões que poderiam favorecer a narrativa dos grupos ultraconservadores foram aceitas, enquanto se acumularam mais de dez pedidos de viagens de relatores internacionais ao país. Agora, o governo Lula terá de liderar com os pedidos.
De fato, um primeiro sinal de uma mudança de comportamento já aconteceu com a delegação da ONU para a prevenção de genocídio. O governo brasileiro fechou uma agenda de viagem para o final de abril, permitindo que a representação possa fazer investigações no país sobre um possível caso de genocídio indígena.
Nos cálculos internos do Itamaraty, as novas visitas de relatores ainda podem ajudar o novo governo a justificar a retirada de medidas adotadas pela gestão de Jair Bolsonaro em temas como o combate ao racismo, situação dos povos indígenas e violência policial.
Direitos Humanos com perspectiva dos países em desenvolvimento
Um dos projetos do novo governo é a de enquadrara a questão dos direitos humanos dentro da realidade dos países em desenvolvimento e suas necessidades.
Mas o país ainda terá o desafio de restabelecer o debate dos direitos humanos como uma questão de valores, e desfazer a prática de Bolsonaro de usá-los como instrumento ideológico para justificar a pressão política sobre governos estrangeiros.
A prática ficou evidente durante o debate sobre a crise na Venezuela, na qual o governo Bolsonaro transferiu para o Conselho de Direitos Humanos parte da estratégia de deslegitimar Nicolas Maduro.
O governo brasileiro também abandonou a causa palestina para dar seu apoio para Israel em todas as votações na ONU, além de se alinhar de forma completa com pontos da política externa dos EUA.
Apesar da tentativa de desfazer o caráter ideológico do debate de direitos humanos, o governo terá de encontrar uma postura para lidar com violações registradas pela própria ONU na Ucrânia ou na Nicarágua.
*Uol
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