É claro que havia gato na tuba. Em outros tempos, a aberração pareceria sensata. Não desta vez.
Estranhei quando li, na Folha, esta informação, do repórter Marcelo Rocha:
“Laudo da Polícia Federal reforçou os argumentos do Ministério Público Federal contra o inquérito aberto pelo presidente do STJ (Superior Tribunal de Justiça), Humberto Martins, para investigar integrantes da força-tarefa da Operação Lava Jato. Com base na conclusão policial, a Procuradoria afirmou ser tecnicamente impossível atestar a integridade e a autenticidade das mensagens apreendidas com os responsáveis pelo ataque hacker contra procuradores da República e outras autoridades –e, portanto, inviável seu uso como prova, como defende Martins.”
Dá até um certo nó no cérebro, né? Certamente não por falha do repórter, mas por um, como posso chamar?, erro nos fatos.
Quer dizer que se fez uma perícia, e a conclusão é que não se pode atestar a incolumidade do material hackeado, embora não se tenha encontrado nenhuma evidência de violação? Venham cá: fez-se uma perícia em busca de indícios de falsificação ou se procuravam provas de autenticidade? Sendo esse o caso, procedeu-se a que tipo de verificação? A patuscada teve consequências. Já chego a elas. Antes, mais algumas informações.
A conclusão estupefaciente foi enviada à ministra Rosa Weber, relatora de um habeas corpus impetrado por Diogo Castor, ex-membro da Lava Jato, que pediu a suspensão do inquérito aberto pelo STJ para investigar se ministros do tribunal foram ilegalmente investigados. A propósito: se não foram, como asseguram os procuradores, por que Castor está com medo e quer impedir a investigação?
UM RESUMO DO IMBRÓGLIO
Reproduzo, abaixo, um trecho do site Consultor Jurídico que dá nome aos bois:
Nesta segunda-feira (12/4), o subprocurador-geral da República José Adonis Callou, o delegado Felipe de Alcântara de Barros Leal e três peritos da Polícia Federal entraram para o hall da fama junto com o coronel Lorena [aquele que falsificou o laudo do atentado no Riocentro]. O grupo gerou um ‘laudo’, em nove páginas, para duvidar da autenticidade dos arquivos roubados pelo hacker Walter Delgatti, do armazém de dados do procurador Deltan Dallagnol.
Com um texto discursivo e retórico, o relatório esbanja adjetivos e não oferece qualquer base concreta para suas conclusões — para tentar dar ares de sentença judicial ao que deveria ser um trabalho técnico. A perícia não cruzou dados, não checou informações nem auditou os arquivos e, por fim, não indicou uma única inconsistência para concluir que os diálogos ‘podem ter sido’ adulterados.
O hacker Walter Delgatti não disse que invadiu o Telegram, mas sim o material que Deltan armazenou na nuvem. Dali, ele baixava os arquivos no Dropbox. E, conforme explica o próprio Dropbox, qualquer alteração feita pode ser verificada. O que, se foi feito, não aparece no “laudo”. Claro que tudo seria esclarecido se os envolvidos franqueassem seus dispositivos para verificação.
DESTITUIÇÃO E ARQUITETURA DO ARRANJO
O delegado Felipe Leal, que conduziu o estranho trabalho, foi destituído pela nova diretoria da Polícia Federal do comando do Sinq (Setor de Inquéritos). Em seu lugar, assume Leopoldo Lacerda. Oficialmente, a troca nada tem a ver com aquela patuscada. Mas o fato é que o troço caiu mal mesmo na Polícia Federal.
Vamos ver. Como vocês sabem, nem Sergio Moro nem os procuradores se ocuparam de negar o conteúdo seja da Vaza Jato, seja da operação Spoofing. Sempre escolheram o terreno escorregadio do “não reconhecimento da autenticidade”. Este estranho drible da vaca que o grupo tentou dar em Rosa Weber nasceu com duas perguntas capciosas feitas pelo subprocurador-geral da República José Adonis Callou, a saber:
a) É possível, tecnicamente, atestar a integridade e a cadeia de custódia do material digital no intervalo entre a obtenção original pelos hackers e a apreensão pela Polícia Federal?;
b) Em caso positivo, foi produzido laudo sobre o item anterior em relação ao material que teve como origem membros do Ministério Público Federal?
Ora, a PF já havia feito perícia e constatado que o material não sofrera adulteração depois da apreensão. Então surgiu uma tese de escape: não poderia o próprio Delgatti ter adulterado o material que recebeu, antes de a Polícia Federal tê-lo recolhido? Se a pergunta fosse feita assim, isso requereria uma prova, certo?
Experiente nas suas artes, Callou fez outra questão: “É possível atestar a integridade?” E, sem encontrar nenhuma evidência de alteração, a resposta dos peritos foi negativa.
SITUAÇÃO ABSURDA
Atenção! A operação Spoofing recolheu sete terabytes de dados. Tentem saber a enormidade que é isso. Imaginem se os hackers se dariam ao trabalho de adulterar conteúdos dos diálogos. Levaria uma eternidade. As reportagens da Vaza Jato — e o Intercept teve acesso a 0,6% do conteúdo recolhido pela Spoofing — evidenciaram que os diálogos dos procuradores e de Deltan Dallagnol com Sergio Moro coincidiam exatamente com decisões que tomavam no curso da investigação.
Não existe resposta certa para pergunta errada. Isso a que chamam perícia é trabalho meramente especulativo.
De resto, o delegado Felipe Leal, destituído do cargo, faz uma leitura política da questão. Escreveu ele:
“E autenticidade e integridade de itens digitais obtidos por invasão de dispositivo alheio não se presume, notadamente quando se reúnem indícios de que o invasor agiu com o dolo específico não apenas de obter como também de adulterar os dados”.
ATENÇÃO! ELES NÃO APRESENTAM EVIDÊNCIA NENHUMA DE ADULTERAÇÃO. Sigamos.
A invasão de dispositivo resulta na coleta de dados indelevelmente marcados por um vício de ilegalidade, circunstância que não pode – ou ao menos não se espera – ser superada com flancos de investigação em face das próprias vítimas. O caminho em sentido oposto, para fins de obtenção de provas ilícitas por derivação, levaria a eutanásia dos rumos da Polícia Judiciária, atingindo por ricochete, em visão holográfica, todos os princípios que inspiram a atuação policial.
Abstendo-nos de neutralidade valorativa, certo é que eventual ação de obtenção de novos elementos e padrões, por meio de investigação lastreada por provas com prévio conhecimento de sua ilicitude, configura crime de abuso de autoridade, previsto no parágrafo único do art. 25 da Lei 13.689/2019.”
Nem Sergio Moro escreveria assim, não é? Não mesmo! O delegado redige melhor do que ele.
LEWANDOWSKI PEDE CÓPIA DE PERÍCIAS
Ocorre que esse troço a que chamam “perícia” também diz respeito a matéria de que é relator o ministro Ricardo Lewandowski. E aí a coisa se complicou.
O ministro determinou que a 10ª Vara Federal de Brasília, onde corre o processo sobre a invasão feita pelos hackers, envie a seu gabinete em cinco dias:
(i) cópia das perícias realizadas em cada uma das mídias apreendidas em poder dos supostos hackers ou de terceiros na Operação Spoofing (aparelhos celulares, tablets, notebooks, desktops etc.); (ii) cópia da perícia conclusiva englobando todo o material apreendido; (iii) cópia do relatório final produzido pelo delegado da Polícia Federal que presidiu o respectivo inquérito policial”.
RETOMO
Não é possível ficar produzindo perícias e laudos ad hoc, especialmente quando a linguagem política toma o lugar da técnica. Se o material foi mesmo baixado a partir da nuvem, a eventual adulteração deixaria marca, o que inexiste.
Há um cheiro no ar de que podem ter produzido um laudo, com impressionante rapidez, para induzir a ministra Rosa Weber a erro e para tentar impedir, a qualquer custo, a continuidade do inquérito aberto pelo STJ.
De resto, lembro: o tribunal não precisa tentar validar os dados da Operação Spoofing como provas. Ali estão indícios de que se cometeu um crime grave. A investigação pode produzir provas autônomas, não é mesmo? Dou um exemplo: se a Receita, por exemplo, escarafunchou a vida de algum magistrado do tribunal ao arrepio da lei, isso também deixa marcas.
Espero que Rosa Weber não caia no truque.
*Reinaldo Azecedo/Uol
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