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Luis Nassif: O coronavírus, o salário do funcionalismo e os ganhos financeiros da Globo

Em nome dessa loucura institucionalizaram-se as práticas econômicas mais deletérias, como a apreciação cambial, as taxas de juros dos títulos públicos, promovendo a mais brutal transferência de renda da história.

O coronavírus está varrendo como um tsunami ideias estabelecidas e todo um edifício retórico que, nas últimas décadas, sustentou o maior processo de concentração de renda da história.

Toda a lógica que legitimou a concentração de renda das últimas décadas baseava-se em premissas falsas. Na ideia de que todo ganho corporativo reverteria em mais investimentos, que gerariam mais empregos, trazendo um ganha-a-ganha geral. O sofisma da “lição de casa” justificou todos os abusos, de Marcílio Marques, no governo Collor, passando por Pedro Malan, no governo FHC, se prolongando com Antônio Palocci e Henrique Meirelles nos governos Lula e Temer. Os erros de Dilma foram de outra natureza.

Em nome dessa loucura institucionalizaram-se as práticas econômicas mais deletérias, como a apreciação cambial, as taxas de juros dos títulos públicos, promovendo a mais brutal transferência de renda da história.

Esse modelo acabou. O coringavirus veio com pitadas de castigo divino, obrigando a uma solidariedade geral. Sem a solidariedade, haverá morte, conflitos, ranger de dentes, a dissolução do tecido social brasileiro e das barreiras sanitárias, com o coringavirus se impondo definitivamente.

Mas a síndrome do escorpião é terrível.

Ontem, o Globo fez um editorial sugerindo que o funcionalismo público deva dar sua contribuição à crise. Para justificar, recorreu à indefectível economista Zeina Latif, que montou um modelito econômico a la carte, para atender à tese proposta.

Nem vou entrar no caso da Zeina, que ganhou uma belíssima e justa bolada do banco XP por ajuda-lo, com suas análises econômicas, a galgar um reconhecimento do mercado, permitindo um IPO bilionário, que não acontecerá nunca mais, pois fruto das distorções monumentais do excesso de liquidez e de análises furadas de economistas de mercado que levaram o mundo a este situação.

O raciocínio da Globo se baseia no manual das simplificações de planilha, do cabeça de planilha tradicional. Consiste no seguinte: defino a conclusão de acordo com minhas conveniências. Depois, monto um mundo de planilha, apenas com as variáveis que ajudam a justificar meu raciocínio. O economista age como um bom Ministro do Supremo: primeiro firma a convicção política, depois vai buscar o argumento.

O mundo simplificado consiste em um país com duas variáveis apenas: os trabalhadores do setor público e do setor privado.

Como só tem duas variáveis – empregados do setor público e do setor privado – que se façam as comparações.

Diante da rápida e maciça perda de receita das empresas, é preciso agir para que elas sobrevivam. Na quarta, foi anunciado que será proposto que os empregadores possam cortar pela metade o salário de seus funcionários, na mesma proporção da redução da jornada de trabalho. O conceito de que é melhor preservar o emprego e parte da remuneração do que ser demitido é indiscutível.

Ora, se as finanças públicas estão dissolvendo, porque a recessão seca os canais que abastecem o Tesouro de impostos, e é preciso dinheiro público para salvar vidas em hospitais, postos de saúde e garantir alguma renda a dezenas de milhões de pessoas que vivem na informalidade, entre outras, os servidores precisam dar sua contribuição. Eles são um dos maiores itens de despesa nos orçamentos públicos, federal, estaduais e municipais.

Fantástico, justo e correto.

Mas vamos ampliar um pouco o mundo. Além de trabalhadores do setor privado e público, vamos incluir os beneficiários de ganhos financeiros em cima da dívida pública.

O Brasil é um caso único de ganho em cima do Tesouro. Em outros mercados, acionistas e executivos ganham em cima de operações não muito corretas, de recompra de ações, mas, em todo caso, fica entre eles e o mercado.

Veja bem, esse ganho financeiro não gerou um emprego, um aumento do nivel de atividade, não exigiu esforço algum. Bastou aplicar em títulos públicos e esperar o resultado em casa.

Já os gastos do funcionalismo, tirando uma elite de marajás e distorções pontuais, resultam em produtos entregues: aulas, atendimento de saúde, segurança, arrecadação fiscal, regulação do setor monetário etc. Podem melhorar? Podem. Podem deixar de existir? Jamais.

E nada como analisar o próprio balanço do Grupo Globo e comparar receitas financeiras estéreis (pois não resultam em investimentos nem em mais emprego, nem exigem criatividade, inovação, melhorias) com empregos públicos essenciais.

O resultado operacional líquido (aquele que reflete receitas menos despesas) em 2019 foi negativo em R$ 572,5 milhões, contra R$ 530 milhões em 2018. Quando inclui a TV por assinatura, o resultado operacional foi melhor, mas também em queda, de R$ 573 milhões contra R$ 1 bilhão em 2018.

Quando se entra nos resultados financeiros, o quadro muda. A receita financeira em 2019 foi de R$ 752 milhões, contra R$ 1,2 bilhão em 2018. 2020, sem eventos esportivos, será pior.

Mas a questão é outra. Vamos a algumas comparações, com algumas categorias fundamentais do funcionalismo.

Confira a tabela.

O lucro financeiro da Globo em 2018 daria para contratar

* 6.944 médicos clínicos para o SUS,

* ou 25.469 professores do ensino básico,

* ou 7.234 médicos cubanos, garantida a parte de Cuba,

* ou 30.848 funcionários DAS 1 e 8.033 DAS 4,

* ou 8.286 professores com doutorado.

Representa o mesmo que os vencimentos de

– 120 Ministros do STF ou
– 6.186 Almirantes de Esquadra, ou ainda
– 3.963 fiscais da Receita.

Por que é possível essa comparação? E porque a Globo tem interesse em reduzir o salário do funcionalismo público e manter as regras fiscais? Porque todos esses gastos são medidos em reais e constam do orçamento. Saem todos da mesma boca de caixa. E, portanto, a Globo está defendendo os interesses dela e de todos os proprietários de dívida púbica. Em um momento de calamidade, a Globo está discutindo contabilidade.

Vamos comparar, agora, com programas relevantes do setor público.

penúltima coluna é a equivalência com o lucro financeiro de 2019; a última com o lucro financeiro de 2018.

Confira, então, que apenas o lucro financeiro da Globo correspondeu 1,11 o orçamento da Unifesp, a Universidade Federal de São Paulo; a 2,23 da Universidade Federal de Ouro Preto e a 3,52 da Universidade Federal do ABC.

Corresponde a 1,66 vezes mais tudo que é gasto com Vigilância Epidemiológica, 5.20 vezes mais do que os gastos com toda a população indígena e 6,25 vezes as verbas para desenvolvimento científico.

Repito, é um dinheiro estéril, que não resulta em mais investimento, em mais emprego, em mais riqueza. E representa o ganho de apenas uma grande empresa nacional.

Á medida que o coronavirus vai fazendo baixar a maré da especulação, as águas vão se esvaindo deixando à vista os detritos e comparações inevitáveis. E a dúvida que jamais será respondida: como chegamos tão baixo no nível de percepção e no conceito de justiça e de desenvolvimento?

 

 

*Luis Nassif/GGN