Com a Netflix a guerra híbrida é uma realidade

Uma entrevista com
Atilio Boron

Sociólogo esclarece o drama pré-eleitoral na Argentina e relata como as direitas latino-americanas atuam com as forças imperialistas para manter a divisão dos povos no século XXI.

sociólogo argentino Atilio Boron é um dos intelectuais marxistas mais ativos da América Latina hoje. Seus artigos e livros contribuem para o debate ideológico dos defensores de Nuestra América. Em conversa com Jacobin Brasil, se mostrou otimista com os rumos da política no continente, vê grandes chances do retorno do kirchnerismo na Argentina e uma pronta derrota de Bolsonaro no Brasil. Nesta entrevista, Boron trata de sua mais recente obra, O Feiticeiro da Tribo – Mario Vargas Llosa e o Liberalismo na América Latina (2019), que será publicada em breve no Brasil pela editora Autonomia Literária, onde desconstrói as referências liberais do autor peruano que jamais deveria ter abandonado a literatura para se tornar analista político. Guerras Híbridas, Chernobyl, Netflix, Unasul, realismo mágico, perspectivas políticas, nada passa despercebido aos olhos deste que nos garante: antes de qualquer coisa, é preciso vencer a batalha ideológica.

O kirchnerismo tem chances de voltar ao poder nas eleições presidenciais deste ano na Argentina?

AB – Definitivamente, há possibilidades reais de que o macrismo seja derrotado. De toda forma, é necessário ser cuidadoso porque noto em muitos companheiros, tanto na Argentina quanto no Brasil, um diagnóstico muito economicista da crise. Pensam que diante da clara intensificação da pobreza e do desemprego, com a bancarrota de muitas empresas pequenas e médias, a inflação, que com tudo isso as pessoas automaticamente votarão em uma alternativa ao macrismo. É provável, mas não é certo que as coisas aconteçam assim. Muita gente ainda pensa que, apesar desta crise econômica, as promessas de governo Macri podem ser cumpridas num próximo turno presidencial. Há muita gente neste país que foi conquistada pela “ideologia da festa”. Ou seja, a crença de que na houve uma festa populista na Argentina nos tempos dos Kirchners e chegou o momento de pagar a conta.

Esta é uma narrativa da grande mídia?

AB – É uma narrativa da mídia que tem tido muito êxito não só na Argentina, mas em grande parte da América Latina. No Brasil se escuta algo parecido. É uma coisa séria que pode ser um obstáculo ao triunfo do kirchnerismo. Minha segunda consideração é: o kirchnerismo 2.0 – para usar a linguagem da informática – não é o mesmo que o Kirchnerismo 1.0. Alberto Fernández não é Cristina Fernández Kirchner, é um homem muito mais moderado. Evidentemente terá o apoio de Cristina no Senado, se chegar a ganhar, mas este é um regime presidencialista onde por mais que haja uma grande líderança política como Cristina no Senado – salvo que ela saia a organizar o campo popular, coisa que ainda não tem feito – a pressão do parlamento sobre Alberto Fernández não vai ser suficiente para impulsionar políticas mais radicais.

Por exemplo, Alberto Fernández não está disposto a reinstalar a Lei de Meios que foi revogada por Macri. Alberto Fernández tem uma posição pelo menos ambígua em relação à Venezuela, não está a favor de Juán Guaidó, mas ao mesmo tempo não deixa de falar que há uma ditadura ou uma situação de violação dos Direitos Humanos por lá. Alberto Fernández acredita que a Argentina deve voltar aos seus alinhamentos internacionais tradicionais com os Estados Unidos. Tudo isso evidentemente não era a versão do kirchnerismo 1.0. Mas um setor importante da esquerda argentina está convencido de que não podemos apostar numa fórmula que vá perder para Macri. Se nossa opção for votar no demônio, primeiro elegemos o demônio, depois nos encarregamos de saber o que fazer com ele. O mais importante é acabar com o inimigo principal que está produzindo este verdadeiro holocausto social na Argentina.

No Brasil, onde a esquerda errou ao não apostar todas as fichas em uma só candidatura nas eleições presidenciais?

AB – Eu acredito que este é o erro tradicional das esquerdas em todo o mundo. A direita sabe muito bem o que defende e raramente se equivoca. Além disso, o imperialismo também raramente comete um erro ao identificar o adversário. Já nós, da esquerda, como não temos uma situação de privilégio para defender, e temos que debater planos alternativos para superar o capitalismo, é muito fácil que haja dispersão de votos. E ainda há setores da esquerda que subestimam o imperialismo de forma surpreendente. Aqui na Argentina os setores muito radicalizados não têm a menor noção do que significa o imperialismo e o que significa realmente a dominação capitalista. A partir de um diagnóstico muito abstrato, dizem que Macri e Fernández são dois políticos burgueses. Isso é óbvio. Mas Hitler também era um político burguês, bem como os sociais-democratas alemães, e se comprovou que havia diferenças. Um deles mandou 6 milhões de judeus ao holocausto e desencadeou a Segunda Guerra Mundial, enquanto o outro teria feito uma política muito modicamente reformista, mas não teria produzido esta tragédia. Então existe esta incapacidade de diferenciar as matizes entre um político burguês capaz de produzir um holocausto e um político burguês que vai fazer uma política moderada de reformas sociais. Acredito que no Brasil aconteceu exatamente o mesmo. Claro que Haddad não era Che Guevara e Manuela não era Rosa Luxemburgo.

Este é um tema que Fidel Castro falou muito: é a consciência possível. Ou seja, até que ponto o povo brasileiro está disposto a defender uma proposta revolucionária socialista radical? Com este monopólio dos meios de comunicação, esta enorme vitória ideológica da direita não somente na América Latina, mas em todo o mundo… Há uma população mobilizada disposta para receber esta mensagem e sair a lutar hoje pelo socialismo e pela revolução? Não há! Então se não há, estamos em um processo de construção, temos que ir fazendo aos poucos. Temos que fazer aquilo que Frei Betto chama de “alfabetização política do povo”. E este processo de alfabetização política não foi feito pelas forças progressistas na América Latina.

Com os sucessivos golpes que sofremos nos últimos anos, em Honduras, Paraguai e Brasil, o ciclo progressista está frágil, apesar de alguns países ainda resistirem, como a Venezuela e a Bolívia. Mais recentemente o México passou a integrar este quadro. Se Evo Morales for reeleito e o kirchnerismo voltar ao poder, pode começar uma nova fase da esquerda no continente?

AB –

O ciclo progressista está fraco, mas não morreu. Como você disse, o México se incorpora quase 20 anos depois porque López Obrador tem mais sintonia com Evo, Lula ou Cristina que com Macri ou Bolsonaro. Ou seja, houve retrocessos grandes em países importantes como Argentina e Brasil, mas vai ser possível recuperar de alguma forma a marcha. E nem a Argentina, nem o Brasil, demonstraram até agora ser capazes de estabilizar um processo de reorganização reacionária do capitalismo.

No caso argentino, Macri tem chances muito grandes de perder a eleição. No Brasil, a verdadeira comoção social, econômica e política, coloca o país quase como um ‘Estado canalha’ porque, depois das revelações do The Intercept, Lula teria que ter sido imediatamente posto em liberdade. O Supremo Tribunal do Brasil está discutindo algo que nos Estados Unidos, ou na França ou na Alemanha, teria provocado imediata liberação de Lula. O ciclo progressista tem problemas? Sim! Está morto? Não! O novo ciclo da direita surgiu com força? Não!

Assim como Lula, Cristina Kirchner e Rafael Correa também foram vítimas de lawfare. Os vazamentos do Intercept, ao trazer à tona as inconsistências deste processo brasileiro, podem colocar em xeque o “método Lava Jato” que foi usado em outros países para perseguir lideranças políticas?

AB – Os Estados Unidos decidiram substituir os velhos golpes militares por golpes chamados “brandos”, mas que na verdade são muito violentos. Estes golpes se apoiam em três dispositivos. Primeiro, o controle quase absoluto da imprensa que desempenha um papel fundamental. Segundo, os juízes e os procuradores são treinados durante muito tempo pelos Estados Unidos nos cursos de boas práticas e as consequências disso Sérgio Moro mostrou de forma clara ao condenar Lula não pelas evidências, mas por suas convicções – isso significa um salto para trás de mais de dois séculos na história do Direito moderno. E, em terceiro lugar, estão os legisladores corruptos que também são convidados periodicamente a fazer cursos de boas práticas nos EUA. Este é o tripé que acabou com Manuel Zelaya, Fernando Lugo e Dilma Rousseff.

Há um dado muito interessante: no caso de Lugo e Dilma houve a mesma diretora da orquestra que foi Liliana Ayalde [embaixadora norte-americana]. Liliana Ayalde esteve no Paraguai, montou a operação e foi embora, em seguida retornou como embaixadora no Brasil, em 2013, para fazer exatamente a mesma coisa. Ou seja, é uma pessoa especializada em produzir este tipo de golpe brando.

Os Estados Unidos hoje optam por este tipo de ação que tem um resultado muito mais conveniente porque não é mais necessário apelar à figura odiosa de um militar com a cara de Augusto Pinochet, ditador no Chile entre 1973 e 1990, ou Castelo Branco, ditador no Brasil entre 1964 e 1967.

Então sim, vão aplicar este modelo em toda a América Latina, não só onde esteve a Operação Lava Jato, mas vão aplicá-lo até mesmo em países onde a Odebrecht não esteve presente executando obras públicas. E não se esqueça de uma coisa, toda esta ofensiva não foi destinada apenas a acabar com líderes incômodos para os Estados Unidos, mas também para tirar do jogo a maior empresa latino-americana de construção de obras públicas que era a Odebretch, em favor de empresas americanas como a Halliburton Construction e outras. Não podemos pensar que isso é só um problema político, é também um interesse econômico em acabar com estes governos e abrir espaço para as empresas americanas que vão começar a fazer agora o que a Odebrecht fazia.

Na esteira dos desmontes, há um projeto em curso para desarticular a Unasul e o Brasil tem tido um papel importante neste processo.

AB – A Unasul, originalmente, foi um projeto de Fernando Henrique Cardoso, depois foi retomada e redefinida por Hugo Chávez que atraiu Lula e Néstor Kirchner e gerou uma proposta totalmente diferente. Mas a Unasul é um projeto fundamental para os nossos países, inclusive para o Brasil, e vem de muito longe. O cientista político brasileiro Hélio Jaguaribe tinha uma tese fundamental: segundo ele, ”o Brasil não consegue sozinho”. Quando todos nós pensávamos que o Brasil, poderia se destacar sozinho por suas dimensões, ele dizia que apesar disso, o atraso tecnológico e social do Brasil faz com que a união dos países da América Latina seja absolutamente necessária para potencializar a todos. O Brasil é um país que precisa da energia que sobra da Venezuela, precisa da alimentação que sobra da Argentina, dos minerais do Chile e do Peru, então ele tinha a tese de formar um polígono de resistência. A Unasul vem deste conceito, por isso Fernando Henrique propose Hugo Chávez redefiniu-a, em função da nova realidade do século 21.

Agora, uma das primeiras coisas que o governo Macri fez foi enfraquecer a Unasul. Ou seja, retirar-se, subestimar apoio. E por fim, o supremo traidor da política latino-americana, Lenín Moreno, presidente do Equador, colocou os últimos pregos no ataúde da Unasul. Isso evidentemente reflete o sucesso de um objetivo antigo da Política Externa dos Estados Unidos para o qual qualquer processo de integração sul-americano soa como uma ameaça à hegemonia imperialista.

Toda união dos países de baixo significa enfraquecer o poder imperialista na região. Então não é casualidade que governos absolutamente subordinados aos Estados Unidos, como Macri, Bolsonaro, Sebastián Piñera [Chile], Iván Duque [Colômbia], que são maus governos da América Latina, tenham atacado a Unasul. Obviamente a direita tem muito claro que é preciso manter a divisão dos povos da América Latina. Mas nós vamos ressuscitar a Unasul, e vamos fazê-la melhor, é uma questão de tempo apenas.

Para as gerações que já cresceram nestes países no período progressista e ingressaram na universidade através das políticas públicas, reverter o atual cenário soa como uma tarefa muito difícil. Mas falando contigo, me parece que está bastante otimista…

AB – O Brasil vai dar certo, não há dúvidas sobre isso! Mas é preciso se dar conta que os processos históricos não são lineares. Agora estamos num retrocesso, mas isso vai dar lugar a uma superação. O Brasil não está condenado a ter um governo vergonhoso como o de Bolsonaro. Precisamos nos preparar para a mudança, fazer um exercício de autocrítica, se perguntar por que o Brasil chegou até aqui, reconhecer que houve erros. Houve erros na questão do PT que explicam o desenlace de toda essa situação crítica até chegar em Bolsonaro. Mas o Brasil é um país com imensos recursos e se conseguir organizar a grande massa popular, ainda que parcialmente, poderá recuperar o rumo. Só não pode perder a esperança, a história é assim. O Brasil não está voltando para o ano de 1964, apesar das promessas de voltar à ditadura.

O lema “Lula Livre” é uma agregação social e política muito importante. Mas há novos líderes surgindo, muito capazes, que ainda não se lançaram com tudo para organizar um movimento social e político renovador e isso faz falta. Me preocupa não ver Fernando Haddad cumprindo um papel importante que deveria agora. É uma pessoa muito inteligente, com muita experiência, mas não o vejo agora no primeiro plano da luta política, o vejo fechado nas Universidades como professor. Eu creio que Haddad tem enorme potencial de ser um dos polos de aglutinação da sociedade brasileira. Manuela D’Ávila também é uma pessoa que tem um enorme potencial de liderança. E há outros líderes que não podem ser subestimados, Ciro Gomes não é um personagem qualquer, é um homem que tem um discurso e uma capacidade de interpretação importante; João Pedro Stédile é um fenomenal líder de massas, Guilherme Boulos também. Há toda uma camada de líderes que são uma promessa de que o Brasil pode dar um salto.

Eu entendo a situação de todos eles porque o fenômeno de Bolsonaro era algo totalmente imprevisível. Mas foi uma operação maestra do imperialismo e inclui a famosa facada que, cada vez levanta mais suspeitas de ter sido uma operação cinematográfica. Há suspeitas de que houve cumplicidade dos médicos – que precisam ser denunciados – pois afirmaram que Bolsonaro não poderia participar dos debates quando ele estava claramente em condições de participar. Foi uma conspiração entre os meios de comunicação, os médicos, os juízes e os procuradores que impediram Bolsonaro de ir aos debates porque se ele tivesse ido em apenas um debate com Haddad teria sido um papelão universal e ninguém teria votado nele. Então creio que devemos ter esperança que o Brasil vai encontrar rapidamente seu rumo e o tempo passa rápido. A deterioração de Bolsonaro está nítida, as pesquisas mostram que é o presidente mais impopular nos primeiros seis meses da história do país.

Em seu livro, que em breve será lançado no Brasil, você apresenta Vargas Llosa como um grande romancista que infelizmente usa sua impressionante capacidade com as palavras para manipular a opinião pública e defender o neoliberalismo. Quem é este “Feiticeiro da Tribo”?

AB – A meu ver, Vargas Llosa é hoje o principal propagador do neoliberalismo no mundo. Não só nos países de língua hispânica e portuguesa, mas também nos EUA, na Inglaterra em parte da Europa. Seus artigos publicados periodicamente no El País são reproduzidos em mais de 300 jornais somente na América Latina e no Caribe. É um homem muito hábil, tem um manejo extraordinário da linguagem, seu espanhol é límpido, muito claro, musical, agradável, mas ele o tem colocado a serviço dos piores interesses do imperialismo.

Originalmente Vargas Llosa veio da esquerda, como mostro em meu livro. Ele foi militante de uma célula clandestina do Partido Comunista do Peru e provocou toda esta transformação que passa de uma esquerda marxista dura, à qual ele foi fiel até o ano de 1971. A Revolução Cubana contou com o apoio dele desde 1959 até meados de 1971 e depois lentamente ele foi se afastando, não foi uma ruptura brusca. Mas tem tido um impacto imenso.

No livro “O Chamado da Tribo”, que eu critico, ele aborda os fundamentos teóricos onde está embasada sua concepção liberal. O que eu faço em minha obra, O Feiticeiro da Tribo, é examinar um a um os sete autores fundamentais sobre os quais ele se apoia – Adam Smith, José Ortega y Gasset, Raymond Aron, Friedrich Von Hayek, Karl Popper, Isaiah Berlin, e Jean-François Revel – e mostro as inconsistências.

Capítulo a capítulo mostro que não há nem boa análise empírica, nem argumentação teórica correta. E no último critico a ideia inicial de que liberalismo e democracia são duas caras da mesma moeda. Isso é absolutamente falso. O liberalismo é intrinsecamente inconciliável com a democracia porque como expressão ideológica do capitalismo significa fundamentalmente o individualismo e o princípio da ganância como condutor da organização da vida social. Já a democracia se organiza sobre a base de justiça e igualdade. Portanto são duas instituições que vivem em choque permanente: quanto mais liberalismo existir, menos democracia vamos ter.

Portanto, termino o livro com este capítulo de reflexão mais teórica questionando o que Varga Llosa defende. Claro que ele o diz num espanhol encantador, por isso o chamo de “feiticeiro”. Ele engana com seu jogo de palavras. E aí aproveito uma frase que ele mesmo usa para falar sobre sua tarefa como escritor, ele diz: ”um novelista é um senhor que diz mentiras que parecem verdades”. Isso é o que ele faz em sua obra de ensaios políticos, por isso há tantos ataques brutais contra López Obrador, contra Chávez, Correa, Evo, Cristina e Lula. Por que? Porque ele, como diz Noam Chomsky, é um “mandarim do império” e cumpre muito bem essa função.

A partir da perspectiva brasileira, tenho a sensação de que estamos de costas para a América Latina, apenas a literatura, em especial o boom do realismo mágico do qual Vargas Llosa é um dos precursores, conseguiu atravessar esta fronteira. Isso é um projeto? Seu livro pode contribuir para quebrar esta barreira?

AB – A classe dominante brasileira é uma das mais experimentadas e tem sido muito inteligente e muito perversa em blindar o Brasil e mantê-lo fora da América Latina. Um grande sociólogo e economista brasileiro, Ruy Mauro Marini, dizia que o projeto da direita brasileira é ser o subimpério. É justamente isso, mas este é um projeto mesquinho para um país como o Brasil. Impedir que sua população sequer saiba o que acontece com os vizinhos é uma forma de reforçar sua dominação interna e ao mesmo tempo apostar todas as fichas de que o Brasil será grande nas mãos dos Estados Unidos. Pobrezinho! Os Estados Unidos vão esmagar qualquer país que de alguma forma possa crescer tanto a ponto de ser uma ameaça a seus interesses. Nunca vão permitir que o Brasil seja a grande potência que está destinado a ser, sobretudo se o Brasil seguir se submetendo às regras do imperialismo.

O senhor fala em seu livro sobre como os intelectuais à direita “saem na frente” nesta batalha ideológica porque têm um aparato midiático a seu favor. Quais os caminhos devem trilhar aqueles que permanecem convictos às causas justas?

AB – Hoje temos as redes sociais como uma forma alternativa de se fazer conhecer, mas qualquer bobagem que Varga Llosa faz é reproduzida por pelo menos 300 jornais. Isso é algo absolutamente inalcançável. Porém as coisas estão mudando, e devemos manter viva a esperança. Estamos numa batalha muito desigual, mas como as coisas que estamos dizendo são verdade, ao fim e ao cabo a verdade aparece porque eles não podem tapar a sol com a peneira.

Nosso papel é dizer a verdade e denunciar a mentira, mesmo que não tenhamos um grande aparato midiático, mas cada vez mais temos meios alternativos. Por isso tenho confiança que vamos sair deste mal trecho em que se encontra a América Latina. Perdemos tempo, começamos tarde, Fidel recomendou que começássemos esta batalha na década de 90 e nós começamos 15, 20 anos depois. Burrice!

Temos que dar um empurrão nos intelectuais brasileiros para que parem de achar que Bolsonaro representa um retorno à ditadura de 64, tenho visto um pouco este temor e têm que parar já com isso e convocar as pessoas para que saiam às ruas. É interessante o que estão fazendo Caetano Veloso e Chico Buarque porque através das artes e da música estão avançando mais do que os que se dedicam a escrever. Talvez este seja um bom caminho.

Os tentáculos dos EUA para manipular a opinião pública são muitos e um deles são as produções culturais de massa. Atualmente, por exemplo, uma série sobre Chernobyl tem tido muita audiência. Como o senhor vê estas narrativas supostamente neutras difundidas nas plataformas de streaming?

AB – A guerra híbrida é uma realidade. A lawfare, a judicialização da política, o controle dos meios de comunicação, tudo isso passa a ser absolutamente fundamental. Eu vejo com muita preocupação. Chernobyl no Netflix é um caso perfeito para ilustrar. Eles mostram a degradação moral e política da União Soviética. O objetivo é deixar claro que a União Soviética hoje se chama Rússia. Mas esta série oculta um dado essencial: quando toda a Europa e os EUA lavavam as mãos com relação às vítimas de Chernobyl, houve um país pobre e subdesenvolvido chamado Cuba que atendeu mais de 24 mil crianças atingidas por este acidente nuclear em pleno período especial – fase mais crítica da economia cubana, no começo dos anos 90.

Eu sou o presidente honorário da Efac (Encontro Fraternal Argentino Cubano), através desta instituição estamos terminando um documentário chamado Tarará, que é o nome do hospital onde foram atendidas as crianças de Chernobyl. O objetivo é basicamente contrapor a história difundida pelo Netflix que não diz a verdade sobre o acidente e tampouco menciona o que ainda está acontecendo. Este reator 4 que explodiu ainda segue trabalhando e emitindo radioatividade e a cobertura que fizeram sobre isso é de que a União Europeia não tem dinheiro para reparar isso porque são pelo menos 100 milhões de euros para fazê-lo e os ”miseráveis governos europeus” não querem colocar um peso e querem que a Ucrânia, ou a Rússia, assumam isso sozinhos, e se esse reator chegar a romper vamos ter um Chernobyl novamente. Isso não se fala na série da Netflix e o perigo está aí.

Não podemos evitar que eles digam mentiras, o que nós temos que fazer é dizer a verdade. Uma coisa que me incomoda muito com o governo de Lula no Brasil é que não fez nenhum esforço sério para mexer na comunicação. O governo brasileiro tinha que ter uma rede de comunicação própria e não depender da Rede Globo como aconteceu com Dilma que toda vez que precisava fazer uma declaração ganhava uma migalha de dez minutos antes da novela das 8. Estamos muito mal nesta batalha, o imperialismo é muito criativo. Segundo Chomsky, é o maior projeto de dominação da história. Se nós não reagirmos a tempo teremos problemas graves. É imenso nosso desafio nesta guerra ideológica.

 

 

*Do Jacobin Brasil

 

 

Por Celeste Silveira

Produtora cultural

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