Um grupo de 63 congressistas dos Estados Unidos enviou nesta quinta-feira, 14/10, uma carta ao presidente Joe Biden em que pede que ele reveja a oferta para que o Brasil se torne um parceiro global da Otan (Organização Tratado Atlântico Norte) e revogue a condição de aliado extra-Otan concedida ao país ainda no governo de Donald Trump.
O status como aliado militar preferencial dado ao Brasil facilita a compra de tecnologia militar e armamentos dos EUA, garante a participação das Forças Armadas brasileiras em treinamentos promovidos pelo Pentágono, além de outros benefícios militares.
“Precisamos rever isso para assegurar que não estamos fortalecendo um Exército que pode ser usado para um golpe de Estado”, afirmou à BBC News Brasil o congressista Hank Johnson, democrata veterano na Câmara autor do ofício enviado à Casa Branca.
Segundo Johnson, “Bolsonaro já demonstrou que está organizando as condições para um golpe militar. É um cenário alarmante para o Brasil e nosso país não pode contribuir com isso”.
A carta, à qual a BBC News Brasil teve acesso com exclusividade, é endossada por mais de um quarto da bancada democrata na Câmara dos Deputados, que tem maioria na Casa.
Na missiva, os parlamentares, entre os quais expoentes do partido como Alexandria Ocasio-Cortez (conhecida como AOC), afirmam que o presidente Jair Bolsonaro fez “ameaças à jovem democracia do Brasil” e que “declarou que não vai aceitar o resultado das próximas eleições se elas acontecerem conforme as regras atuais”, isto é, sem o voto impresso pela urna eletrônica – mudança que o presidente encampou publicamente mesmo após a derrota da proposta no Congresso.
“Achamos isso particularmente preocupante porque Bolsonaro trouxe mais oficiais militares para sua administração do que qualquer outro presidente desde que a democracia no Brasil foi restabelecida, criando conflitos entre instituições governamentais e as forças armadas”, afirmam os 63 congressistas na carta a Biden.
Aliado militar dos EUA desde 2019
Para os congressistas democratas, seria um contrassenso do governo Biden patrocinar avanços militares a um governo que poderia usar as forças para desestabilizar a democracia no maior país da América Latina.
A confirmação de que o Brasil se tornara um aliado extra-Otan aconteceu em agosto de 2019, ainda na gestão Trump, e foi recebido com comemoração pelo governo brasileiro. “É bem-vinda nossa participação como grande aliado extra-Otan, que facilita muitas coisas. O mais importante é a questão de defesa, compra de armamento, algumas tecnologias. Alguma coisa sempre interessa pra gente. Como regra, um país da Otan uma vez agredido, todo mundo está junto”, afirmou Bolsonaro à época.
E, apesar das divergências em temas como a agenda ambiental, o governo do democrata Joe Biden acenou com um avanço na relação militar em agosto de 2021.
Em visita a Bolsonaro em Brasília, o Conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos ofereceu ao Brasil a possibilidade de ser parceiro global da Otan. Embora não decidam sozinhos quem pode ingressar na entidade, os americanos são determinantes para sacramentar a entrada de um país na Otan.
Reservadamente, diplomatas americanos reconheceram que a oferta foi cuidadosamente pensada: como o presidente brasileiro é afeito a temas militares, os EUA escolheram esse caminho como “agenda positiva” que pudesse aumentar a disposição das autoridades brasileiras em relação ao tema do combate ao aquecimento global e à exclusão de empresas chinesas da rede 5G do país, duas prioridades da gestão Biden.
A oferta, porém, aconteceu quase ao mesmo tempo em que Bolsonaro e a Marinha promoviam um desfile de blindados na Esplanada dos Ministérios, o que foi interpretado como demonstração de força contra os demais Poderes da República. Na mesma semana, o presidente repetiu alegações sem prova de que a eleição de 2018 havia sido fraudada.
Isso fez com que representantes de Biden tivessem que dar declarações públicas de apoio ao sistema eleitoral brasileiro. “Nós reforçamos (a Bolsonaro) a importância de não diminuir a confiança (da população) no processo eleitoral, especialmente porque não há evidências de fraudes nas eleições anteriores”, afirmou Juan González, assessor de Biden para a América Latina.
González, no entanto, descartou que fosse contraditório fortalecer o aparato militar do país enquanto condenava manifestações de Bolsonaro contra o sistema eleitoral.
“Nosso ponto aqui é que temos uma ampla relação institucional com o Brasil. Podemos nos engajar em assuntos de cooperação em áreas de segurança, de economia, e ainda assim ser muito claros em demonstrar nosso apoio de que é o povo brasileiro quem determina o resultado de suas eleições”, afirmou González.
*Com informações da BBC Brasil
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Se conquistar o ouro olímpico era um tabu para o futebol brasileiro até 2016, agora já virou rotina. Na manhã deste sábado (7), no mesmo Estádio de Yokohama que testemunhou o pentacampeonato em 2002, a seleção olímpica venceu a Espanha por 2 a 1, na prorrogação, e conquistou o título do futebol nas Olimpíadas pela segunda vez consecutiva. Matheus Cunha abriu o placar, Oyarzabal empatou, e Malcom definiu a vitória brasileira na prorrogação na mesma goleira em que Ronaldo marcou duas vezes há quase duas décadas. A Espanha, campeã em 1992, ficou com a terceira prata de sua história.
Brasil e Espanha tiveram campanhas contestáveis no caminho até a decisão, ainda que fossem desde o início os grandes favoritos ao ouro. A seleção brasileira, por exemplo, empatou com a Costa do Marfim na fase de grupos e precisou dos pênaltis para passar pelo México nas semifinais. Os espanhóis só venceram um jogo no tempo regulamentar em toda a campanha — contra a Austrália, na primeira fase. No mata-mata, precisou da prorrogação para derrotar os marfinenses e o Japão.
A final começou no padrão do famoso jogo de posição espanhol, que jogava 4-3-3. Uma esticada a partir do campo de defesa espanhol exigiu que Santos saísse da área para afastar com o pé aos dois minutos. Ainda que o domínio de posse fosse dos europeus, o Brasil esboçou o seu primeiro ataque aos sete, em uma roubada de bola. Mas Matheus Cunha conduziu até perder a bola perto da área. Aos 11, o goleiro Santos deu um chutão que se transformou em lançamento para Antony, mas o goleiro Simon saiu da área e impediu qualquer risco.
As trocas de passes da Espanha geraram um lance de alto perigo para o Brasil aos 15. Depois de uma bola cruzada, Diego Carlos desviou de cabeça contra o próprio gol, mas ele próprio conseguiu afastar em cima da linha. No minuto seguinte, Asensio cobrou falta por cima do gol. Aos 18, um erro na saída de bola da Espanha gerou oportunidade para os brasileiros. Richarlison rolou para Douglas Luiz, que chutou travado.
A seleção, que passou a ter mais controle sobre o volume de jogo, voltou a atacar bem aos 24. Arana trabalhou a bola pela esquerda e cruzou rasteiro para Richarlison, que bateu de virada. A bola foi na rede, mas pelo lado de fora. Antony fez, aos 29, uma bonita jogada pela esquerda e cruzou, mas Richarlison cometeu falta no meio da área.
O Brasil se defendia com uma linha de cinco quando não estava com a bola. Aos 31, a Espanha tentou furar o bloqueio jogando pelos lados. Asensio, na direita, chutou cruzado com o pé esquerdo, mas Santos pegou com facilidade. No meio do primeiro tempo, o árbitro australiano Chris Beath começou a perder o controle da partida. As entradas duras eram recorrentes, com cartões amarelos para Garcia, da Espanha, e Richarlison.
Aos 33, uma dessas faltas gerou uma boa chance para o Brasil. O goleiro espanhol saiu muito mal do gol e atropelou Matheus Cunha — a bola passou ao lado da trave. O choque gerou a revisão do árbitro de vídeo, e Beath confirmou o pênalti cometido por Simon. Richarlison, no entanto, pegou embaixo na bola depois de dar passos lentos a caminho da bola e mandou para fora.
Depois do pênalti desperdiçado pelo Brasil, os dois times ficaram mais cautelosos. Mas isso não impediu que a seleção atacasse. Aos 44, Richarlison recebeu na área e bateu em cima da zaga. Aos 46, o gol finalmente saiu. Daniel Alves aparou cruzamento alto e mandou de volta para o meio. Matheus Cunha, finalmente recuperado de lesão muscular, dominou com classe no meio de três zagueiros espanhóis e chutou no canto para abrir o placar. 1 a 0.
Confira lista de locais que serão palco de mais uma manifestação popular contra o governo Bolsonaro.
As Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo divulgaram, nesta sexta-feira (23), a lista atualizada das cidades e países que serão palco de mais um protesto contra o governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ao todo, são 426 atos confirmados em 405 cidades e 15 países integram o rol de atos populares.
Do Acre ao Rio Grande do Sul, o Brasil mais uma vez terá manifestações em todas as regiões. Já pelo mundo as ações irão percorrer México, Canadá, Estados Unidos, Alemanha, Áustria, Bélgica, Portugal, Itália, Irlanda, Holanda, Espanha, França, Inglaterra, República Tcheca e Suíça.
Os organizadores orientam que os participantes utilizem máscara, levem álcool em gel e mantenham o distanciamento social durante os atos por conta da covid-19.
Leia aqui: Vai protestar contra Bolsonaro? Saiba como ir às ruas seguindo protocolos sanitários
Os adeptos dos protestos cobram também auxílio emergencial de R$ 600 e políticas contra o desemprego, que atinge mais de 14 milhões de brasileiros. Confira a seguir a lista completa dos locais e horários de cada manifestação.
No Brasil
Norte
AC – Rio Branco – Gameleira | 15h
AM – Itacoatiara – Mirante (ao lado da Pizzaria Panorama) | 16h30
“A América Latina está no centro da disputa geopolítica que os EUA travam com Rússia e, principalmente, com a China, por isso a intensificação do ativismo imperial para derrubar governos e mudar regimes”, escreve Jeferson Miola.
A influência crescente da China na América Latina em vários âmbitos – comercial, financeiro, político, econômico, tecnológico e de investimentos – desatou reações vigorosas do establishment estadunidense com o objetivo de recompor sua debilitada hegemonia hemisférica. Trata-se da conhecida Doutrina Monroe, do ano 1823 do século 19: “A América para os Americanos”.
Após as tentativas fracassadas de mudança de regime na Venezuela nos primeiros anos deste século 21, os EUA então multiplicaram o cardápio de novos mecanismos e dispositivos para interferir, desestabilizar e golpear governos progressistas, considerados hostis e desafiadores aos seus interesses históricos e estratégicos.
As clássicas quarteladas do século 20 deram lugar a golpismos de novo tipo. Manipulação de redes sociais, infiltração de mercenários, financiamento de ONGs e oposições mercenárias, retórica anticorrupção, sanções ilegais, guerra informacional e ajuda financeira a governos vassalos compõem o diversificado cardápio para a desestabilização de democracias e derrubada de governos constitucionais.
A corrupção de juízes, procuradores, policiais, parlamentares, mídia e “formadores de opinião” para perseguir e aniquilar inimigos [lawfare], além disso, foi largamente empregada em vários países da região para recobrir com “verniz institucional” processos de violação das democracias. Argentina, Brasil, Equador, Peru e Venezuela foram os alvos mais notórios desta estratégia jurídico-midiática-empresarial-militar e parlamentar.
Na Venezuela, contudo, a retórica da guerra fria, de invasão bélica e ameaça da guerra civil continua sendo reiteradamente repetida pelos EUA e governos vassalos na região, principalmente Colômbia e Brasil. Mas, de modo geral, se observa que os estratagemas para a recolonização hemisférica passaram a ser mais elaborados, como se observa no inventário parcial da atuação – por vezes nem tão oculta – dos EUA nos últimos anos:
– 2008: governo boliviano acusou os EUA de patrocinarem conflito separatista no departamento de Santa Cruz de La Sierra [Meia Lua]. Líderes da extrema-direita boliviana reuniram-se diversas vezes na embaixada dos EUA para planejar o plano de secessão;
– 2009: golpe em Honduras com a destituição, prisão e exílio ilegal do presidente Manuel Zelaya;
– 2012: golpe no Paraguai, com o impeachment sumário perpetrado em menos de 72 horas sem causa, sem processo e sem direito à defesa do presidente Fernando Lugo;
– 2012: criação da Aliança do Pacífico com governos vassalos para debilitar papel da UNASUL e CELAC;
– 2013: espionagem da presidente Dilma e da PETROBRÁS que pode estar relacionada com os preparativos da Lava Jato;
– 2013: cursos dos Departamentos de Justiça e de Estado e agências de inteligência dos EUA para procuradores, juízes, políticos, policiais federais e oficiais das Forças Armadas;
– 2013: “primavera brasileira” com as jornadas de junho e processos de desestabilização;
– 2013: avião presidencial de Evo Morales foi obrigado a fazer pouso de emergência em Viena depois dos EUA obrigarem países europeus a proibirem pouso técnico para reabastecimento em viagem de regresso de Evo da Rússia, colocando a vida do presidente em risco. Motivo: suspeitavam que Evo trazia Edward Snowden para conceder-lhe exílio na Bolívia;
– 2013: diplomata tucano Eduardo Saboia, encarregado de negócios da embaixada do Brasil em La Paz arquitetou e executou pessoalmente a fuga do senador oposicionista Roger Pinto, condenado criminalmente pela justiça da Bolívia [como prêmio, o diplomata tucano tornou-se chefe de gabinete de Aloysio Nunes no Itamaraty no governo golpista e ilegítimo de Temer];
– 2015/2016: derrubada da presidente Dilma. Em 18 de abril de 2016, dia seguinte à aprovação da fraude do impeachment na Câmara, o senador tucano Aloysio Nunes viajou a Washington para 3 dias de encontros com altas autoridades estadunidenses;
– 2017: formação do Grupo de Lima com governos vassalos para avançar plano de atacar a Venezuela;
– 2018: governos vassalos dos EUA abandonam a UNASUL, organismo pelo qual os países da região equacionavam conflitos regionais pacificamente e sem interferência da OEA, organismo totalmente teleguiado por Washington;
– 2018: esvaziamento da CELAC, organismo que congrega todos os países do hemisfério americano e que deixa de fora apenas EUA e Canadá [espécie de OEA sem EUA e Canadá];
– 2018: pressão dos EUA para FMI conceder empréstimo eleitoral de US$ 57 bilhões ao governo Macri, da Argentina, para impedir a eleição do peronismo [Alberto e Cristina] ao governo;
– 2019: designação de Juan Guaidó como “presidente autoproclamado” [sic] da Venezuela;
– 2019: simulacro de ajuda humanitária para invadir a Venezuela com apoio dos governos Bolsonaro e Ivan Duque;
– 2019: Luís Almagro, da OEA, falsificou informes para anular eleição legítima de Evo Morales e justificar o golpe perpetrado pela extrema-direita boliviana com o apoio material, político e diplomático dos governos Macri/Argentina, e Bolsonaro/Brasil;
– 2020: enfraquecimento do MERCOSUL por meio do acordo com a União Européia e tentativas de flexibilização da Tarifa Externa Comum do Bloco;
– 2020: agentes e apoiadores do governo brasileiro seguem caminho de Olavo de Carvalho e refugiam-se nos EUA – irmãos Weintraub, blogueiro Allan dos Santos, empresário cloroquiner Carlos Wizard, juiz-ladrão Sérgio Moro, etc;
– 2021: viagem da vice-presidente dos EUA à América Central para difundir o eixo de ação dos EUA de “combate à corrupção” para a região [sic];
– 2021: presidente venezuelano Nicolás Maduro denunciou que o comandante do Comando Sul dos Estados Unidos Craig Faller e o diretor da CIA William Burns visitaram Colômbia e Brasil com objetivo de preparar plano para assassiná-lo;
– 2021: diretor da CIA se reuniu no Brasil com o chefe da ABIN, generais do governo militar e com Bolsonaro.
No último 7 de julho o presidente do Haiti Jovenel Moïse foi assassinado por mercenários de nacionalidade colombiana e estadunidense.
E, para completar este inventário provisório, destacam-se ainda os estranhos protestos “patrióticos” que espocaram em Cuba neste domingo, 11 de julho. Neles, “patriotas” usavam máscaras faciais estampadas com a bandeira dos EUA, também agitadas nos protestos.
Os EUA agravaram o bloqueio ilegal a Cuba para asfixiar o país e causar o caos social que anima reações contrarrevolucionárias como as que estão em curso.
A América Latina está no centro da disputa geopolítica que os EUA travam com Rússia e, principalmente, com a China, por isso a intensificação do ativismo imperial para derrubar governos e mudar regimes.
A política externa do establishment estadunidense é bipartidária. Ou seja, é a política externa que tanto o Partido Democrata como o Partido Republicano executam para a concretização do projeto de dominação imperial no mundo, como se observa neste resumido inventário que cobre episódios ocorridos na América Latina durante os governos Bush, Obama, Trump e Biden.
São gritantes as marcas das garras dos EUA sobre a América Latina.
Dezenas de milhões de brasileiros enfrentam fome ou insegurança alimentar à medida que a crise Covid-19 do país se arrasta, matando milhares de pessoas todos os dias.
Adolescentes magros como uma vara seguram cartazes em pontos de trânsito com a palavra fome – fome – em letras grandes. As crianças, muitas das quais estão fora da escola há mais de um ano, mendigam por comida em supermercados e restaurantes. Famílias inteiras se amontoam em acampamentos frágeis nas calçadas, pedindo leite em pó para bebês, biscoitos, qualquer coisa.
Um ano após o início da pandemia, milhões de brasileiros estão passando fome.
As cenas, que proliferaram nos últimos meses nas ruas do Brasil, são uma prova cabal de que a aposta do presidente Jair Bolsonaro de que poderia proteger a economia do país resistindo às políticas de saúde pública destinadas a conter o vírus falhou.
Desde o início do surto, o presidente do Brasil se mostrou cético quanto ao impacto da doença e desprezou a orientação de especialistas em saúde, argumentando que os danos econômicos causados pelos bloqueios, fechamentos de empresas e restrições de mobilidade por eles recomendados seriam uma ameaça maior do que a pandemia para a fraca economia do país.
Essa troca levou a um dos maiores índices de mortalidade do mundo, mas também fracassou em seu objetivo – manter o país à tona.
O vírus está se espalhando pelo tecido social, batendo recordes dolorosos, enquanto o agravamento da crise de saúde leva as empresas à falência, matando empregos e prejudicando ainda mais uma economia que cresceu pouco ou nada por mais de seis anos.
No ano passado, os pagamentos emergenciais em dinheiro do governo ajudaram a colocar comida na mesa para milhões de brasileiros – mas quando o dinheiro foi reduzido drasticamente neste ano, com uma crise da dívida se aproximando, muitas despensas ficaram vazias.
Cerca de 19 milhões de pessoas passaram fome no ano passado – quase o dobro dos 10 milhões que passaram em 2018, o ano mais recente para o qual havia dados disponíveis, de acordo com o governo brasileiro e um estudo de privação durante a pandemia por uma rede de Pesquisadores brasileiros focaram no assunto.
E cerca de 117 milhões de pessoas, ou cerca de 55% da população do país, enfrentaram insegurança alimentar, com acesso incerto a nutrição suficiente, em 2020 – um salto em relação aos 85 milhões que o fizeram dois anos antes, mostrou o estudo.
“A forma como o governo lidou com o vírus aumentou a pobreza e a desigualdade”, disse Douglas Belchior, fundador da UNEafro Brasil, uma das várias organizações que se uniram para arrecadar dinheiro para levar cestas básicas a comunidades vulneráveis. “A fome é um problema sério e intratável no Brasil.”
Luana de Souza, 32, foi uma das várias mães que fizeram fila do lado de fora de uma despensa improvisada em uma tarde recente na esperança de ganhar um saco com feijão, arroz e óleo de cozinha. Seu marido havia trabalhado para uma empresa que organizava eventos, mas perdeu o emprego no ano passado – uma das oito milhões de pessoas que se juntaram à lista de desempregados do Brasil durante a pandemia, elevando a taxa acima de 14%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
No início, a família conseguiu gastar a ajuda do governo com cuidado, disse ela, mas este ano, uma vez que os pagamentos foram cortados, eles tiveram dificuldades.
“Não há trabalho”, disse ela. “E as contas continuam chegando.”
A economia do Brasil entrou em recessão em 2014 e não havia se recuperado quando a pandemia o atingiu. Bolsonaro costumava invocar a realidade de famílias como a de Souza, que não podem se dar ao luxo de ficar em casa sem trabalhar.
No ano passado, quando governadores e prefeitos de todo o Brasil assinaram decretos fechando negócios não essenciais e restringindo a mobilidade, Bolsonaro chamou essas medidas de “extremas” e alertou que elas resultariam em desnutrição.
O presidente também descartou a ameaça do vírus, semeou dúvidas sobre as vacinas, que seu governo demorou a obter, e muitas vezes incentivou multidões de apoiadores em eventos políticos.
Uma segunda onda de casos este ano levou ao colapso do sistema de saúde em várias cidades, as autoridades locais novamente impuseram uma série de medidas rígidas – e se viram em guerra com Bolsonaro.
“As pessoas têm que ter liberdade, o direito ao trabalho”, disse ele no mês passado, chamando as novas medidas de quarentena impostas pelos governos locais equivalentes a viver em uma “ditadura”.
No início deste mês, como o número de mortes diárias causadas pelo vírus às vezes ultrapassava 4.000, Bolsonaro reconheceu a gravidade da crise humanitária que seu país enfrenta. Mas ele não assumiu nenhuma responsabilidade e, em vez disso, culpou as autoridades locais.
“O Brasil está no limite”, disse ele, argumentando que a culpa é de “quem fechou tudo”.
Mas os economistas disseram que o argumento de que as restrições destinadas a controlar o vírus agravariam a crise econômica do Brasil era “um falso dilema”.
Em carta aberta dirigida às autoridades brasileiras no final de março, mais de 1.500 economistas e empresários pediram ao governo a imposição de medidas mais rígidas, incluindo lockdown.
“Não é razoável esperar que a atividade econômica se recupere de uma epidemia descontrolada”, escreveram os especialistas.
A economista Laura Carvalho publicou um estudo mostrando que as restrições podem ter um impacto negativo de curto prazo na saúde financeira de um país, mas que, no longo prazo, teria sido uma estratégia melhor.
“Se o Bolsonaro tivesse implementado medidas de bloqueio, teríamos saído mais cedo da crise econômica”, disse Carvalho, professora da Universidade de São Paulo.
A abordagem de Bolsonaro teve um efeito amplamente desestabilizador, disse Thomas Conti, professor do Insper, uma escola de negócios.
“O real brasileiro foi a moeda mais desvalorizada entre todos os países em desenvolvimento”, disse Conti. “Estamos em um nível alarmante de desemprego, não há previsibilidade para o futuro do país, regras orçamentárias estão sendo violadas e a inflação cresce sem parar”.
Na faixa de 40 a 49 anos, salto entre janeiro e março foi de 626%, passando de 626 internados para 4.548.
A pandemia do novo coronavírus rejuvenesceu no Brasil, e os dados são alarmantes: enquanto o aumento geral de casos foi de 316,68% entre o começo do ano e meados de março, ele saltou mais de 500% em faixas etárias de adultos mais jovens. As mortes, em consequência, também deram um salto.
Os dados são do Boletim Observatório Fiocruz Covid-19, finalizado nesta sexta (26). Ele mostra que a concentração de casos nas idades mais avançadas tem diminuído, com um deslocamento para idades mais jovens.
Na faixa etária dos 30 aos 39 anos, o aumento foi de 565,08% entre a primeira semana epidemiológica do ano, que vai de 3 a 9 de janeiro (440 hospitalizações) e a 10a semana epidemiológica, que vai de 7 a 13 de março (2.923 hospitalizações).
Entre os que têm de de 40 a 49 anos, o salto foi de 626%. Foram 626 pessoas internadas dessa faixa etária na primeira semana de janeiro, contra 4.548 na semana de meados de março.
Entre aqueles que têm entre 50 e 59 anos, o aumento chegou a 525,93% (saltou de 898 para 5.620 internações nas semanas estudadas).
Na faixa etária de 20 a 29 anos, o salto foi menor, mas também significativo: na primeira semana de janeiro, 302 pessoas estavam hospitalizadas, contra 1.074 na semana de março –um aumento de 255%.
Já as mortes tiveram um salto menor nas mesmas faixas etárias, ainda que ele seja expressivo: de 352,62% entre os que tem de 30 a 39 anos, 419,23% entre os que tem de 40 a 49 anos, e de 317,08% entre os que tem de 50 a 59 anos.
Os dados foram coletados no SivepGripe da Fiocruz, que registra as Síndromes Respiratórias Agudas Graves no Brasil. E foram analisados por uma equipe de nove pesquisadores coordenados por Carlos Machado, especialista em saúde pública com enfoque na área de emergências e desastres..
Eles chamam a atenção para o deslocamento da incidência para as faixas mais jovens e a manutenção da mortalidade concentrada nas faixas mais velhas. Dizem que a mudança ainda é inicial, mas contribui para o cenário crítico da ocupação de leitos hospitalares. Por se tratar de uma população com menos comorbidades, é mais lenta a evolução dos casos graves e fatais, e a permanência em leitos de UTI é maior.
Com os leitos ocupados por mais tempo, os problemas de lotação nas unidades de terapia intensiva se agravam.
No mesmo boletim, os pesquisadores apontam que o país se encontra em uma situação de colapso do sistema de saúde. E defendem a adoção do que chamam de “medidas em dois grupos conectados”.
No primeiro grupo, dizem, estão “as medidas urgentes, que envolvem a contenção das taxas de transmissão e crescimento de casos através de medidas de bloqueio ou lockdown (pé no freio), acompanhadas de respostas na ampliação da oferta de leitos com qualidade e segurança, bem como prevenção do desabastecimento de medicamentos e insumos. No segundo grupo, as medidas de mitigação, com o objetivo reduzir a velocidade da propagação (redução da velocidade”.
Eles reforça que as medidas devem ser combinadas em diferentes momentos, a depender da evolução da epidemia até que se tenha 70% da população brasileira vacinada.
A nova edição do boletim alerta ainda que “desde o início da pandemia os estudos científicos apontaram a necessidade de vacinação da maior parte da população, em combinação com a adoção de medidas não-farmacológicas prolongadas, envolvendo distanciamento físico e social, uso de máscaras e higienização das mãos, com ações intermitentes de bloqueio (lockdown) com restrição da circulação e de todos os serviços não-essenciais quando as capacidades de cuidados intensivos fossem excedidas”.
Os pesquisadores afirmam ainda que o “ritmo lento em que se encontra a vacinação contribuí para prolongar a duração da pandemia e da adoção intermitente de medidas de contenção e mitigação”.
A equipe coordenada por Carlos Machado é integrada por Christovam Barcellos, Daniel Antunes Maciel Villela, Gustavo Corrêa Matta, Lenice Costa Reis, Margareth Crisóstomo Portela, Diego Ricardo Xavier, Raphael Guimarães, Raphael de Freitas Saldanha, Isadora Vida Mefano.
Aerial view of the Vila Formosa Cemetery during the coronavirus COVID-19 pandemic, in the outskirts of Sao Paulo, Brazil on July 20, 2020. - Brazil raised its record number of coronavirus deaths over to 80.000, as the pandemic that has swept across the world hits Brazil with its full force. (Photo by FERNANDO MARRON / AFP)
“Lamentamos muito”. “Como está tua família?”. “Quanto tempo falta para a próxima eleição?”.
Entrar hoje sede da ONU, em Genebra, na condição de brasileiro é se deparar com comentários indignados, gestos sinceros de solidariedade, questionamentos e um certo grau de desconfiança vindos de todos os níveis. Do mais alto escalão de diplomatas aos funcionários mais modestos.
Nesta quinta-feira, os dados da pandemia no mundo divulgados no site da OMS dão uma dimensão da crise brasileira. No período de 24 horas considerado até o meio-dia, o mapa apresentava o Brasil com 2.841 óbitos.
O número é o equivalente a todas as mortes somadas nos seis países seguintes no ranking da agência de Saúde.
No mesmo período, morreram 993 pessoas nos EUA, 460 na Rússia, 431 na Itália, 356 na Polônia, 267 na Ucrânia e 236 na França. No total, o Brasil correspondeu a quase 30% de todas as vítimas fatais pela covid-19 no mundo nessas 24 horas. Em termos de novas contaminações, também somos líderes.
Mas muito além dos números, o Brasil lidera acima de tudo no critério da falta de rumo. Entre diplomatas e negociadores estrangeiros, se desfaz em alta velocidade o que restava de uma reputação já abalada do país.
A percepção é de que vírus poderia ser inevitável. Mas não a dimensão da destruição que ele está causando no país. “E, nesse aspecto, a responsabilidade é diretamente do presidente (Jair Bolsonaro), que se recusou a assumir a tarefa de proteger seu povo”, comenta um interlocutor nas Nações Unidas.
Questionei um membro do alto escalão da OMS se não era o caso de ampliar a ajuda internacional ao Brasil. A resposta foi reveladora. “Estamos fazendo o que podemos. Mas a falta de uma coordenação nacional e mensagens que contradizem nossas recomendações não ajudam”.
O próprio diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, admitiu há poucos dias sua surpresa diante do colapso do sistema de saúde do Brasil. “Não era o que esperávamos”, disse.
Num tom indignado, o garçom responsável por servir café no único bar aberto da ONU nesses dias me lançou uma pergunta por sobre o balcão: “vocês não vão reagir não?”
Não faltam ainda os momentos em que afloram os velhos e insistentes traços da xenofobia de uma certa camada da população europeia. “Um caos desse já era de se esperar quando o vírus chegasse a um local como o Brasil”, comentou um dos responsáveis pela área de tecnologia no prédio da ONU.
Dentro de mim, um só pensamento surgiu ao ouvir essa frase: “com que moral agora vou rebater a tal comentário?”. Hoje, constato que, para o mundo, meu país é uma mistura de um sinônimo de morte, incompetência, fundamentalismo religioso, deboche internacional e negacionismo.
Desesperadora, a situação brasileira começa a ser é alvo de um debate internacional, inclusive no sentido de avaliar algum tipo de resgate. Não por simpatia ao presidente Bolsonaro. Mas por uma constatação da comunidade estrangeira de que o país representa uma ameaça sanitária. “O que ocorre no Brasil importa”, disse Mike Ryan, diretor de operações da OMS.
Ao final desta quinta-feira, ao deixar a sede da ONU em Genebra, encontrei um velho amigo por um dos corredores semi-vazios do prédio.
“O Brasil parece ser hoje o cemitério do mundo”, lamentou o embaixador estrangeiro. Vendo minha reação claramente emocionada, ele completou com um comentário ainda mais dolorido: “Gostaria de te dar um abraço. Mas você esteve no Brasil recentemente?”
O Brasil assumiu a liderança mundial em novas contaminações pela covid-19, superando os EUA, e assusta cientistas estrangeiros e instituições internacionais. Dados compilados pelo Centro Europeu de Controle de Doenças apontam que, hoje, o país tem a maior intensidade de transmissão, com um recorde de infecções.
Se o número global de infectados desde janeiro de 2020 ainda coloca os EUA na primeira posição mundial com 29 milhões de casos, os técnicos europeus alertam que uma avaliação mais precisa do atual estágio da pandemia apenas pode ser feito se forem considerados os últimos 14 dias.
O período é determinado com base na incubação do vírus. Saber onde ocorreram as contaminações nessas duas semanas, de acordo com os pesquisadores, é saber onde está a crise hoje no mundo.
Neste período, o mundo registrou 5,4 milhões de novos casos da covid-19. 858 mil deles, porém, ocorreram apenas no Brasil, 15% do total. A população brasileira, porém, representa apenas 2,7% do planeta.
Nos EUA, foram 798 mil novos contaminados em 14 dias. A França também viveu uma alta. Mas atingiu apenas 300 mil novos casos, contra 258 mil na Itália, 223 mil na Índia e 114 mil na Alemanha.
Tanto entre pesquisadores europeus como no caso da OMS, o foco é o de saber se essa explosão de novas infecções no país deve ser explicada pela maior transmissibilidade da mutação P1 do vírus, ou se a onda está relacionada com o comportamento da sociedade e do governo no Brasil.
O documento semanal da OMS sobre a pandemia também deixa claro que a situação da variante do vírus identificado no Brasil preocupa. A agência confirma que a mutação é mais transmissível e pode evadir entre 25% e 61% da imunidade oferecida por uma infecção com o vírus original da covid-19. Isso, segundo a OMS, torna as pessoas mais vulneráveis a uma reinfecção. Além disso, a agência indica que estudos mostram que a variante é entre 1,1 e 1,8 mais letal.
O temor é de que, com uma vacinação lenta no país, um espaço amplo seja deixado para que a variante passe a ser dominante em todo o Brasil. Além disso, o risco é de que, com ampla circulação, novas mutações ocorram.
Pelo atual ritmo de produção e de compra de vacinas, o Brasil apenas conseguirá uma imunidade de rebanho com o imunizante em abril de 2022, oito meses depois de EUA e outros países ricos.
Nos bastidores, se a OMS acreditava que 2021 seria um ano para virar uma página na história da doença, a pandemia ganhou um novo centro: o Brasil, incapaz de controlar a doença e nem de chegar a um consenso nacional para enfrentar a crise.
Dados da agência sobre a situação global entre os dias 1 e 7 de março apontam, por exemplo, que o cenário brasileiro é o que mais preocupa hoje a entidade.
Enquanto houve uma queda de 6% em mortes pela covid-19 no mundo no período avaliado, o que se registrou no Brasil foi um salto de 23%. Foram 60 mil óbitos registrados no mundo, contra 9,9 mil no Brasil. Um dia depois dessa avaliação, o país batia um novo recorde, com 2,2 mil novas mortes em 24 horas.
De acordo com a OMS, o país vai na contramão do mundo. A queda de mortes foi de 17% nos EUA, 7% no México, 30% na África do Sul, 21% na Etiópia, 20% na Nigéria, 3% na França, 30% na Indonésia, 6% na Índia, 17% no Japão, 20% nas Filipinas e 36% na Malásia.
No dia 11 de março de 2020, depois de sofrer forte pressão por parte do Ocidente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) cedeu e reconheceu que o mundo vivia uma pandemia da covid-19. Por semanas, a entidade havia evitado classificar a crise dessa forma, num gesto que até hoje é alvo de questionamentos internacionais.
Se a OMS havia sido alertada no último dia de 2019 sobre o surto em Wuhan, um debate intenso nos bastidores se armou nas semanas seguintes sobre como agir diante da China. Preocupada em tentar garantir acesso ao país, a direção da OMS escolheu um caminho diplomático.
Não haveria acusação contra Pequim e todas as decisões seriam tomadas de forma conjunta. Tampouco haveria uma decisão da agência de recomendar suspensão de viagens para a China.
Hoje, as investigações internas já falam abertamente: tanto a China como a OMS fracassaram e, ao arrastar o pé por semanas, permitiram que o vírus se espalhasse pelo mundo globalizado.
Ainda em fevereiro de 2020, após uma coletiva de imprensa, eu e uma jornalista sueca perguntamos ao diretor geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, se vivíamos uma pandemia. Ele nos olhou de forma fixa e manteve um silêncio revelador da dimensão da crise. Nos bastidores, as pressões políticas eram violentas.
Finalmente, naquele dia 11 de março, na sede da OMS, jornalistas apertados na sala de controle da agência no subsolo do prédio, finalmente ouvimos do etíope que ele já considerava o cenário como sendo o de uma “pandemia”.
Em termos legais, isso não faria diferença, pois a OMS já havia declarado no final de janeiro a crise como uma emergência global, o nível máximo de alerta dentro de seu sistema. Mas, para diversos governos e inclusive para o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, a declaração de uma pandemia teria ajudado a mobilizar governos.
Naquele momento, o mundo registrava 118 mil casos e 4,2 mil mortes. Mais de cem países já tinham seus primeiros casos. “Pandemia não é uma palavra que pode ser usada de qualquer forma. Se for usada de forma errada, pode causar medo injustificado ou a aceitação de que a luta acabou, levando à morte e sofrimento desnecessários”, alertou Tedros.
No meio de sua explicação, porém, uma frase deixou todos naquela sala em choque: “nunca vimos antes uma pandemia que possa ser controlada”. Estávamos entrando em um território completamente desconhecido. Mas ninguém naquela organização jamais imaginou a dimensão que ganharia a crise.
Naquela mesma noite, o então presidente Donald Trump anunciaria restrições de viagens e, nos dias seguintes, o mundo pararia. Ninguém seria poupado. Mas nem por isso o vírus foi democrático. Quem mais perdeu foram os mais vulneráveis, com um salto inédito no desemprego, uma queda sem precedentes da economia, o desmantelamento de 30 anos de avanços sociais, a volta da pobreza e da fome e o adiamento.
A história do mundo estava em transformação em tempo real e nas telas de celulares pelo planeta. Mas justamente num momento em que o planeta estava despreparado e dividido.
Ideologia e política acima de saúde
No caso brasileiro, a pandemia colocou um governo frágil e sem planos em uma situação de crise permanente. A escolha adotada: negar, pelo menos em público, sua existência.
Por semanas, propostas de ampliar controles e tomar medidas foram ignoradas, enquanto as recomendações da OMS eram ridicularizadas pelo presidente Jair Bolsonaro.
Sob a alegação de estar “cuidando da renda das famílias”, o Planalto decidiu que controlar o vírus não seria uma saída. Diferentes ministros da Saúde se sucederam até que o governo encontrou um militar que assumiria a pasta para cumprir ordens.
No palco internacional, prevaleceram a ideologia e interesses políticos, em detrimento da saúde. Em reuniões da OMS, as instruções do Itamaraty eram a de não dar poderes ou credibilidade para que a entidade assumisse qualquer papel central na resposta.
Para o chanceler Ernesto Araújo, a entidade fazia parte de uma constelação de organizações que ameaçam a soberania dos países e que são, supostamente, infiltradas por comunistas na busca de controlar o destino do planeta.
Portanto, não se aceitariam recomendações da agência, mesmo que viessem de alguns dos maiores cientistas do mundo.
O Brasil optou por se distanciar de debates sobre como dar uma resposta global à pandemia e fez questão, ao lado dos EUA de Trump, de impedir que isso ocorresse.
Quando participava dos encontros, o foco era alertar para o vírus do comunismo, postura que virou alvo de chacota internacional e numa tentativa de frear a China.
Em Brasília, Mandetta relatou como qualquer aproximação sua à embaixada da China era alvo de uma campanha paralela para minar o diálogo.
Internamente, vencer as eleições de 2022 era mais importante que proteger a população. Bolsonaro criticou o isolamento, colocando a conta da crise econômica sobre os governadores. A máscara foi politizada, com membros do governo repetindo teorias da conspiração sobre como o produto tentava limitar liberdades individuais.
Se a máscara e o vírus eram politizados, a história não foi diferente com a vacina. A ordem era é de evitar qualquer aproximação com a China e, ao mesmo tempo, com governos estaduais que representassem uma ameaça aos interesses políticos.
Mas, com os barcos queimados por posturas de ruptura diplomática, o governo descobriu que não tinha a quem recorrer para negociar vacinas e, enquanto outros países acumulam acordos com diferentes fornecedores, só agora o governo sai em busca de novos contratos.
Resultado: pelo atual ritmo, o Brasil apenas conseguirá uma imunidade de rebanho com a vacina em abril de 2022, oito meses depois de EUA e outros países ricos.
Novo epicentro: o Brasil
Um ano, 117 milhões de infectados e 2,6 milhões de mortes depois, o mundo exausto já sabe que 2021 não verá o fim da pandemia. Os planos internos da OMS falam abertamente sobre como, durante os próximos meses, os desafios serão profundos.
A estratégia é a de tirar, com a vacina e o fim do governo negacionista de Trump, a intensidade no número de mortes e terminar o ano com uma queda substancial, principalmente de óbitos entre idosos e profissionais de saúde. O vírus, segundo alguns dos cenários do setor farmacêutico, se tornaria endêmico, o que exigirá campanhas anuais de vacinação.
Mas se a OMS acreditava que 2021 seria um ano para virar uma página, a pandemia ganhou um novo centro: o Brasil, incapaz de controlar a doença e nem de chegar a um consenso nacional para enfrentar a crise.
Dados da agência sobre a situação global entre os dias 1 e 7 de março apontam, por exemplo, que o cenário brasileiro é o que mais preocupa hoje a entidade.
Enquanto houve uma queda de 6% em mortes pela covid-19 no mundo no período avaliado, o que se registrou no Brasil foi um salto de 23%. Foram 60 mil óbitos registrados no mundo, contra 9,9 mil no Brasil. Um dia depois dessa avaliação, o país batia um novo recorde, com 2,2 mil novas mortes em 24 horas.
De acordo com a OMS, o país vai na contramão do mundo. A queda de mortes foi de 17% nos EUA, 7% no México, 30% na África do Sul, 21% na Etiópia, 20% na Nigéria, 3% na França, 30% na Indonésia, 6% na Índia, 17% no Japão, 20% nas Filipinas e 36% na Malásia.
Em termos de novos casos de infecção, a OMS também apontou como a expansão descontrolada do vírus no Brasil colocou o país na liderança, o que vai significar um volume maior de mortes nas próximas semanas.
Contabilizando os últimos sete dias, foram 500 mil casos no Brasil, contra 479 mil nos EUA e apenas 147 mil na França. O documento semanal da OMS também deixa claro que a situação da variante do vírus identificado no Brasil preocupa. A agência confirma que a mutação, conhecida como P1, é mais transmissível e pode evadir entre 25% e 61% da imunidade oferecida por uma infecção com o vírus original da covid-19. Isso, segundo a OMS, torna as pessoas mais vulneráveis a uma reinfecção. Além disso, a agência indica que estudos mostram que a variante é entre 1,1 e 1,8 mais letal.
Para a OMS. “é difícil determinar a causa da alta mortalidade, que poderia ser tanto pela variante P1 ou pelo colapso dos sistemas de saúde”. Na sede da agência, há ainda uma terceira opção sob consideração: a de que as duas coisas estejam ocorrendo ao mesmo tempo no país, o que abre uma perspectiva de que a pandemia ainda cobrará um preço mais elevado da sociedade brasileira.
“O Brasil está doente e descobriu que não tem mais leito”, lamentou um alto dirigente da agência. Em Genebra, uma palavra vem à tona quando o assunto é a crise no país: “tragédia”.
O Brasil registrou o maior número de novas infecções no mundo em 24 horas, superando os EUA e aprofundando sua posição de um dos palcos mais dramáticos da expansão da covid-19 no mundo.
Dados publicados nesta manhã pela Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam que 59,9 mil foram registrados no Brasil no período de 24 horas e submetidos para a agência. No caso dos EUA, foram 57,8 mil e, no mundo, a OMS soma 225 mil novos casos.
Na prática, de cada quatro novos casos de infecções registradas no mundo, uma ocorreu no Brasil no período de 24 horas.
As informações são divulgadas pela agência com base aos números oficiais submetidos por cada um dos países. Por conta do trabalho de reunir dados de mais de 190 países, o cálculo da OMS conta com um atraso em comparação a outros mapeamentos do vírus por entidades privadas ou institutos de pesquisa.
Não consta do levantamento o último dado divulgado pelo Ministério da Saúde, com 71 mil novos infectados registrados no boletim de quarta-feira, um volume ainda superior às informações da OMS.
Numa contagem semanal, o Brasil também caminha para superar os EUA. Segundo a agência internacional, foram 389 mil novas infecções no Brasil em sete dias, contra 448 mil nas cidades americanas. Em dezembro, os americanos registravam 1,6 milhão de novos casos, contra 310 mil no Brasil.
Nos números totais da pandemia, o Brasil continua em terceiro lugar, com 10,6 milhões de casos, contra 11,1 milhões na Índia e 28,4 milhões nos EUA. A população americana, porém, supera a brasileira em mais de 100 milhões de pessoas.
Mortes vão na direção oposta ao resto do mundo
Em termos de mortes, o Brasil está na segunda colocação em números diários. Na terça-feira, o Brasil registrou um total de 1,7 mil mortes, o maior número em 24 horas desde o início da pandemia. Na quarta-feira, mais um recorde foi batido, com 1,8 mil casos.
Pela contagem da OMS, foram 2,1 mil mortes nos EUA em 24 horas, contra 1,6 mil no Brasil. Mas, em seu informe epidemiológico semanal, a agência já havia indicado que o Brasil ia na contramão do mundo, com um salto no número de mortes no período entre 21 e 28 de fevereiro, enquanto a média global registrava um importante recuo.
Nos sete dias até o dia 28 de fevereiro, o Brasil somou 8070 mortes, mais de 12% de todos os mortos no mundo. De cada quatro vítimas mortais no continente americano, uma é brasileira. O aumento no Brasil em uma semana foi de 11%, em comparação aos sete dias anteriores.
Em dezembro, o Brasil registrava 5,8 mil mortes por semana. Em meados de janeiro de 2021, foram cerca de 6,7 mil vítimas fatais. No final do mês, a taxa tinha atingido 6,9 mil.
Mas a tendência brasileira vai no sentido contrário da Alemanha, com queda de 24%, e do Reino Unido, com recuo de 32%. Nos EUA, a expansão foi de apenas 1% e o país continua a liderar no ranking global, com 14 mil mortes na semana.
No final da semana passada, o chefe de operações da OMS, Mike Ryan, havia comentado a situação brasileira e indicado que o destino da pandemia no Brasil seria relevante para o mundo e classificou a crise no país de “tragédia”.