O inquérito sigiloso da Polícia Federal divulgado por Jair Bolsonaro em uma entrevista ao programa Pingos nos Is da TV Jovem Pan foi originalmente postado numa rede social alternativa chamada Mastodon pelo desenvolvedor Daniel Cid, irmão do ajudante de ordens do presidente da República, o coronel Mauro Jorge Cid.
O vazamento, tornado público na entrevista, levou o ministro Alexandre de Moraes a determinar a abertura de um inquérito contra o presidente da República.
Os metadados do documento foram acessados pela equipe da coluna sob a orientação do professor Miguel Freitas, pesquisador do Centro de Pesquisa em Tecnologia de Inspeção da PUC do Rio de Janeiro. Eles mostram que o inquérito foi arquivado no servidor brasileiros.social, mantido por Daniel Cid dentro da rede Mastodon, a partir de um provedor fora do Brasil, às 19h30 do dia 4, enquanto Bolsonaro dava entrevista.
Duas horas depois, o próprio Jair Bolsonaro replicou o link com o documento em seus perfis no Telegram, no Instagram, no Twitter e no Facebook. “Conforme prometido em entrevista ao “Pingos nos Is”, segue (sic) os documentos que comprovam, segundo o próprio TSE, que o sistema eleitoral brasileiro foi invadido e, portanto, é violável”, escreveu o presidente.
Segundo o TSE, as afirmações de Bolsonaro distorcem o conteúdo do inquérito aberto em 2018 sobre um ataque hacker ao sistema do tribunal, que nem sequer foi concluído.
A investigação foi pedida à PF pelo próprio tribunal, dez dias após o segundo turno das eleições, para apurar denúncias de um ataque aos sistemas da corte, mas não encontrou indícios de que o ataque tenha afetado o resultado das eleições. Segundo se soube lendo o inquérito vazado, o hacker entrou no sistema, mas não conseguiu acessar o módulo sigiloso das urnas.
Depois da live que Bolsonaro realizou no dia 2 de agosto lançando suspeitas sobre a segurança do processo eleitoral, e da entrevista do dia 4, na Jovem Pan, o próprio tribunal enviou ao ministro Alexandre de Moraes uma notícia-crime contra o presidente, o deputado Filipe Barros e o delegado da Polícia Federal Victor Neves Feitosa, responsável pelo inquérito.
No despacho que determina a abertura de investigação, Moraes afirma que o vazamento do inquérito sigiloso “teria o objetivo de expandir a narrativa fraudulenta que se estabelece contra o processo eleitoral brasileiro, com objetivo de tumultuá-lo, dificultá-lo, frustrá-lo ou impedi-lo, atribuindo-lhe, sem quaisquer provas ou indícios, caráter duvidoso acerca de sua lisura”.
A Mastodon vem sendo usada por Bolsonaro para postar conteúdos que foram depois banidos em outras redes, sempre por meio do brasileiros.social. Além do link para o inquérito sigilo, o presidente também já usou o mesmo expediente para divulgar uma cópia de uma edição do Diário Oficial e um artigo sobre os benefícios do “tratamento precoce” contra a Covid-19.
Conhecida por ser uma rede social “aberta”, ou seja, que não controla os conteúdos postados, a plataforma prevê que os controle seja feito pelos próprios usuários, que podem isolar quem esteja postando conteúdos ofensivos ou considerados mentirosos.
A rede social de extrema direita Gab, por exemplo, tentou se inserir na Mastodon depois de ser expulsa de outras plataformas, mas não foi aceita.
Para Freitas, da PUC-RJ, o servidor usado para postar, provavelmente foi escolhida para dificultar a retirada do conteúdo do ar. “Utilizar um servidor web como forma de compartilhar arquivos grandes não é uma prática atípica, mas em si. O que não é corriqueiro é utilizar um servidor próprio, hospedado no exterior e com dados de registro de domínio (DNS) ocultos. Isso indica uma tentativa de esconder a origem do material e torna tortuosa a identificação dos responsáveis.”
Além de irmão do coronel que é ajudante de ordens do presidente da República, Daniel Cid é filho do general da reserva Mauro Cesar Lourena Cid, colega de turma de Bolsonaro da Academia de Agulhas Negras (Aman) e ex-chefe do departamento de Comunicação e Cultura do Exército.
Nas redes sociais, Daniel Cid propagandeia a relação com Bolsonaro. “Muito orgulhoso do meu irmão e de seu trabalho ao lado do presidente do Brasil”, ele postou no dia da posse presidencial, em janeiro de 2019. “Ele é o militar sempre ao lado do presidente em todas as fotos”.
No início desta tarde, enviamos mensagens pedindo entrevistas a Daniel Cid por meio das redes sociais e procuramos o coronel Mauro Cid por telefone e via Secretaria de Comunicação da Presidência da República, perguntando sobre a postagem do inquérito.
Após receber nosso contato, Daniel Cid apagou os documentos que estavam arquivados no brasileiros.social e que haviam sido postados por Bolsonaro em suas redes. Também retirou sua foto e a identificação no perfil que mantém no Mastodon. No lugar, ele colocou no lugar um avatar de Hommer Simpson.
Atualização às 18h20: Daniel Cid entrou em contato com a equipe da coluna e informou que, assim que soube que a postagem era indevida, retirou o documento do ar.
“Eu já tirei do ar do servidor. Na hora que soube que não poderia estar lá”, afirmou.
*Malu Gaspar e Mariana Carneiro/O Globo
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