No Brasil, EUA testarão aliança contra o Irã.
Dentro do próprio Itamaraty, comunicado emitido por chanceler Ernesto Araújo em apoio ao ato de Trump foi duramente criticado por colocar em risco os interesses nacionais, por abandonar respeito à soberania e por quebra de uma tradição diplomática do país de diálogo.
GENEBRA – Aliados do governo de Donald Trump afirmam que deverão ser cobrados e testados em sua aliança com a Casa Branca no dossiê iraniano durante uma conferência organizada no Brasil, em um mês.
Nos dias 5 e 6 de fevereiro, o governo brasileiro aceitou sediar um encontro entre aliados militares dos EUA para debater a situação no Oriente Médio e no Golfo.
Oficialmente, a reunião faz parte do Processo de Varsóvia e teria como função o debate de assuntos relacionados à crise humanitária e refugiados, numa agenda que já havia sido estabelecida em dezembro. O Processo de Varsóvia foi lançado pelo governo Trump na capital polonesa no início de 2019 com o objetivo de reposicionar os EUA na região. Mas, nos bastidores, o projeto tem um só objetivo: conter o Irã.
Levando em consideração os encontros dos últimos meses, nenhum das demais potências deve fazer parte da iniciativa. China e Rússia alertam que o processo é uma forma diplomática que os americanos encontraram para planejar o Oriente Médio e o Golfo sem o Irã. A França também se recusou a participar da iniciativa.
Na região, os participantes são os aliados americanos: Afeganistão, Bahrein, Jordânia, Emirados Árabes e Arábia Saudita, além dos israelenses.
Iraque, Síria, Turquia e Líbano, além dos palestinos, também se recusam a chancelar o processo.
No caso do encontro no Brasil, porém, diplomatas na Europa afirmam que o programa de debates ameaça ser fortemente marcado pela crise declarada entre EUA e Irã. A perspectiva é de que, nos corredores e fora da agenda oficial, negociadores americanos usem a ocasião para garantir um apoio da aliança aos seus atos contra o regime de Teerã.
Desde a morte do general Qasem Soleimani, na sexta-feira, em um ataque americano, o Ocidente e aliados americanos foram tragados para a crise.
Do lado americano, porém, há uma enorme pressão para que tradicionais aliados mostrem “unidade” neste momento.
Diversos países que contam com bases americanas ou que têm sido um aliado explícito de Trump indicaram que temem ser alvos de uma represália por parte do Irã ou de milícias.
Reino Unido, Austrália e Canadá se queixaram de que o ato americano ocorreu sem qualquer tipo de consultas com os aliados que enviaram soldados no Iraque.
Os australianos anunciaram que sua embaixada em Bagdá estava fechada, enquanto Ottawa também demonstrou preocupação com sua presença militar no Iraque.
Brasileiros sob ameaça? No Brasil, certas alas das Forças Armadas deixaram claro que não querem ver o país envolvido na crise entre americanos e iranianos. Mas o grupo mais próximo aos EUA, liderado pelo Itamaraty, pressionou por uma declaração de apoio aos atos de Trump e acabou prevalecendo.
Fontes em Brasília indicaram que, antes de o comunicado oficial do governo ser emitido pela chancelaria, versões preliminares circularam com um tom de apoio ainda mais forte aos interesses da Casa Branca.
Dentro do Itamaraty, o comunicado de apoio aos americanos também foi duramente criticado. Embaixadores e diplomatas indicaram que o texto reflete um rompimento de uma tradicional posição de promoção da paz e diálogo do Brasil, assim como uma chancela de uma violação da soberania de outro país. “Ninguém respeita quem adota uma posição de lacaio”, alertou um experiente embaixador. “Em vez de defender os interesses do país, defendem os interesses americanos. Assim, nenhum país pode ser respeitado”, disse.
Para outro representante da diplomacia nacional, declarações de lealdade em relação ao presidente Donald Trump representam até mesmo um risco para empresas brasileiras.
Cientes dos atos de Soleimani, esses diplomatas brasileiros insistiam na necessidade de uma postura de neutralidade por parte do Brasil. Temendo uma retaliação por parte do chanceler Ernesto Araújo, diplomatas pediram para que suas identidades não fossem reveladas pela reportagem.
À coluna, o ex-ministro da Defesa e ex-chanceler, Celso Amorim, alertou que a posição do governo ameaçaria a própria segurança do país. “A questão é saber até onde irá (a aliança entre Bolsonaro e Trump)”, declarou. “E se, além das perdas comerciais, o governo está disposto a colocar em risco a segurança do Brasil e dos brasileiros”, questionou.
Pressão e Bastidores
Mas fontes diplomáticas confirmaram que, em meio à eclosão da crise, o governo americano fez questão de pressionar seus aliados para que saíssem em apoio à sua ofensiva. Nos últimos dias, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, se queixou do frágil apoio que recebeu dos governos europeus diante do assassinato do general Qasem Soleimani, na sexta-feira. “Não ajuda”, declarou o americano.
No fim de semana, o presidente da França, Emmanuel Macron, telefonou às lideranças iraquianas para demonstrar o apoio de Paris à soberania de Bagdá. Para diversos especialistas europeus, o governo americano violou a soberania iraquiana ao realizar a operação em território estrangeiro, sem ter sequer consultado com o país onde o ataque ocorreria.
A tentativa de manter os canais de comunicação abertos com o Irã também foi demonstrada pela UE, que convidou o chanceler de Teerã para um encontro em Bruxelas.
O gesto foi interpretado como um ato de desafio ao plano americano de isolar o Irã. O objetivo é o de convencer os iranianos a não responder com um ataque militar, já que isso certamente abriria o caminho para uma ofensiva ainda maior por parte de Trump.
O governo do Reino Unido também enviará nesta semana um de seus ministros para Washington, na esperança de convencer a Casa Branca a adotar uma postura menos agressiva na região.
No Vaticano, o papa Francisco apelou para o “auto-controle” e pela manutenção do diálogo. Enquanto isso, os governos da Suíça e do Japão têm tentado mediar a crise, com contatos entre Teerã e Washington para buscar uma desescalada do conflito.
*Jamil Chade/Uol