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‘Meu pai ajudou a criar o SNI nos primeiros momentos da ditadura’

Diferente do pai, o advogado José Silvio Jacome se define como progressista , brizolista e vota no PT.

Os ruídos vindos da cozinha acordaram o menino José, o Zezinho, no meio da madrugada. Esfregando os olhos, sonolento, ele saiu do quarto para ver o que estava acontecendo. Encontrou a mãe, Beatriz, acabando de servir às pressas um café ao seu pai, que já estava vestido para sair. Ela perguntou o que aquele garoto de 13 anos estava fazendo acordado às 3 horas da madrugada. Antes de ser levado por ela de volta para o quarto, quis saber onde o pai estava indo àquela hora. A mãe explicou que tinham ligado do trabalho para que ele fosse tratar de uma emergência. O menino voltou a dormir.

Essa cena, que ficou na memória de José Silvio Jacome, se desenrolou no apartamento em que morava, na Rua Dona Delfina, Tijuca, zona Norte do Rio de Janeiro, no início do dia 1° de abril de 1964. Somente dois anos depois, o garoto tomaria consciência de que seu pai, o advogado André Fernandes Silva Jacome, fora convocado naquela ocasião para uma tarefa grave: dar suporte ao golpe militar-empresarial que jogou o país em uma ditadura que durou 21 anos.

Hoje, com 74 anos, José Silvio tem convicção de que se tornou naquele momento, mesmo que indiretamente, uma das primeiras pessoas a ter a vida afetada pelo regime de exceção que subjugou a democracia no Brasil. Não pelo acontecimento prosaico de ter o sono interrompido pelos barulhos vindos da cozinha, mas porque a convocação feita naquela madrugada de 1964 mudaria para sempre a rotina de sua casa.

“Chamaram meu pai para que ajudasse na estruturação do SNI (Serviço Nacional de Informações)”, conta.

Trata-se do órgão criado oficialmente em junho daquele ano, destinado à espionagem e ao levantamento de informações sobre os adversários políticos da esquerda, ou mesmo da direita que tivessem boa relação com aqueles que a ditadura considerasse “subversivos”. Ao mesmo tempo, o serviço ajudou a encobrir os crimes dos integrantes do regime.

Chefiado pelo poderoso general Golbery do Couto e Silva, considerado um dos principais articuladores do governo ditatorial, o SNI absorveu o Serviço Federal de Informações e Contrainformação (criado em 1958) e a Junta Coordenadora de Informações (criada em 1959). Era o centro de decisão no qual se decidia quais pessoas, instituições e grupos deveriam ser reprimidos, e de que forma.

O jornal Correio da Manhã o definiu com essas palavras: “É um ministério de polícia política, instituição típica do Estado policial e incompatível com o regime democrático”.

Golbery criou o SNI. Posteriormente foi espionado pelo órgão: “Criei um monstro” (Domínio público / Acervo Arquivo Nacional)

Mesmo que tivesse uma proposta autoritária, tanto o general Castello Branco — o primeiro ditador do regime — quanto Golbery quiseram dar ao SNI uma aparência de legalidade. Essa foi a primeira tarefa do advogado André Fernandes Silva Jacome: ajudar a traçar parâmetros que pudessem dar aspectos “legais” ao trabalho do órgão.

“Em 1965, foi lançado o texto ‘A legislação brasileira e a segurança nacional’, do qual meu pai foi um dos autores (junto com Josias Argons)”, relata José Silvio.

O documento passou a circular no Estado Maior das Forças Armadas com o carimbo de “Reservado”. Em suas páginas, definiu o conceito de “ordem política e social”, que serviria como base ao governo militar, sugeriu o papel do “Conselho de Segurança Nacional” e deu interpretação própria a vários pontos da vida nacional, em capítulos cujos títulos são autoexplicativos: “Crimes de responsabilidade”, “Direito de greve”, “Liberdade de imprensa”, “Partidos políticos e legislação eleitoral” e outros.

A linha de raciocínio dos autores está explícita no tópico “Direito positivo”, em que definem “segurança nacional” como a “sensação de paz e tranquilidade que o governo propicia ao povo”, algo que “ocorre em todos os setores da vida nacional”. Partindo dessa premissa, o Estado deveria criar órgãos indispensáveis à “realização da política de segurança nacional”.

Apesar da participação do pai no regime autoritário, José Silvio, também advogado, se define progressista. Conta que repudiou a ditadura desde quando teve consciência do que estava acontecendo e aos 15 anos, aluno do Colégio Pedro II, começou a participar do movimento estudantil, que fazia manifestações contra o governo. O pai nunca soube.

“Nós não conversávamos sobre ideologia política. A certa altura, ele começou a me relatar os absurdos que aconteciam no SNI, muito desgostoso. Era como se eu fosse o confidente dele”, recorda.

Mesmo com o trabalho do pai tendo contribuído para a formação do órgão de repressão, José Silvio o considera um “democrata”. “Era uma época de uma divisão muito grande da sociedade. Ou você estava de um lado, ou estava de outro, não havia meio termo”, justifica.

Conta que o pai participou da Comição Geral de Investigação que revirou pelo avesso a vida de Leonel Brizola, acusado pelos militares de ser “comunista” e “corrupto”. Em uma das conversas, contou que não encontrara nada que justificasse essa classificação.

“O Brizola pode ser tudo, menos comunista e ladrão, pois é dono de milhares de cabeças de gado e suas fazendas ultrapassam três países e não ia se sujar por dez merrecas”, disse o pai, revoltado.

“Desde então, virei brizolista”, conta José Silvio, que tem votado há muitos anos nos candidatos do PT.

Outro motivo de decepção do pai, segundo conta, foi o resultado do Inquérito Polcial-Militar que cassou o coronel da Aeronáutica Rui Moreira Lima, um herói da Segunda Guerra Mundial, também classificado de subversivo. “Meu pai votou contra a cassação, mas dois generais votaram a favor, e por isso foi derrotado. Ele considerava Rui um homem íntegro, que foi vítima pela disputa de protagonismo entre Exército e Aeronáutica”, lembra.

Na opinião de José Silvio, esses dissabores levaram seu pai a uma tristeza profunda, que colaboraram para que tivesse uma isquemia em 1972. Passou a vegetar, com grandes dificuldades para se locomover e falar: “Passou a viver amarrado em uma cama, já sem raciocinar. Teve uma morte horrível em 1983”.

O filho progressista prefere lembrar do que chama de boas intenções do pai, que classifica como advogado competente e respeitado, traído pelos rumos que o regime militar tomou.

Sobre a reivindicação de volta da ditadura, que voltou a ser bandeira de grupos de uma ala militar, José Silvio sugere uma urgente mudança no currículo da caserna. “O problema é a doutrina. Até hoje há apostilas na academia militar que tratam o golpe de 64 como ‘revolução democrática’”, exemplifica. “É preciso ensinar democracia nessas escolas”.

Pela relação de décadas que manteve com militares, chegou a ser convidado para participar dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023.

“Por causa disso rompi amizades de quase 60 anos. Disse que votei no Lula e que não iria haver golpe. Fiz um relatório para o Xandão (ministro Alexandre de Moraes) relatando as reuniões desses conspiradores”, conta. “Sou anti-ditaduras”.

*Chico Alves/ICL

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O ‘cagão’ de 64 que virou o primeiro ditador da ditadura

“O Castello Branco disse pro Mourão que ele se precipitou, e o Mourão disse a ele: ‘Castello Branco, você é um medroso, é um…’”.

Por Hugo Souza

Ao telefone com o presidente João Goulart na noite do dia 31 de março de 1964, o general Amaury Kruel, comandante do II Exército, tentou barganhar a mobilização das suas tropas para resistir ao golpe em marcha. Kruel apresentou a Jango as seguinte condições: romper com os “comunistas”, demitir ministros “radicais” e pôr na ilegalidade a intersindical Comando Geral dos Trabalhadores.

Jango respondeu, antes de bater o telefone:

“General, eu não abandono os meus amigos. Se essas são as suas condições, eu não as examino. Prefiro ficar com as minhas origens. O senhor que fique com as suas convicções. Ponha as tropas na rua e traia abertamente.”

Naquela altura, o general Olímpio Mourão já estava com as tropas na rua, ou melhor, na estrada, deixando Juiz de Fora a caminho do Rio de Janeiro. Anos atrás, um coronel da reserva do Exército contou à Comissão da Verdade Vladimir Herzog, da Câmara de São Paulo, que Kruel traiu Jango não exatamente por suas convicções, mas por 1,2 milhão de dólares americanos, recebidos em seis malas, com intermediação de um grão-dirigente da Fiesp, num laboratório do Hospital Geral Militar de São Paulo.

O documentário O dia que durou 21 anos, de Camilo Galli Tavares, é fundamental para entender o papel dos EUA no golpe de 1964 contra o governo João Goulart e na instalação da ditadura civil-militar no Brasil. Dos EUA e do seu embaixador no Brasil na época, Lincoln Gordon.

O curioso de assistir a O dia que durou 21 anos, disponível aqui, no aniversário do golpe de 64 é que cada minuto do documentário parece contradizer o seu belo e terrível título; cada minuto do filme parece dizer que aquele 31 de março/1º de abril, de alguma maneira – de muitas -, dura até hoje.

Em telegrama enviado a Washington no dia 14 de março de 1964, Gordon informa Lyndon Johnson que “Goulart está definitivamente engajado numa campanha nacionalista para promover as reformas de base, que vão contra os interesses econômicos dos EUA”.

Exatos 54 anos depois, no dia 14 de março de 2018, Marielle Franco foi assassinada no Rio de Janeiro sob uma Intervenção Federal comandada por um ex-adido militar junto à embaixada do Brasil em Washington, além de militar saudoso dos 21 anos de ditadura: o general Walter Souza Braga Netto.

Quatro anos depois da execução de Marielle, em março de 2022, o ex-interventor, naquela altura ministro da Defesa do governo Bolsonaro, assinou uma ordem do dia para ser lida nos quartéis dizendo que “o Movimento de 31 de março de 1964 é um marco histórico da evolução política brasileira, pois refletiu os anseios e as aspirações da população da época”.

Filha do general Olympio Mourão, Laurita Mourão diz em O dia que durou 21 anos que seu pai “saiu pela estrada que ia de Juiz de Fora pro Rio de Janeiro disposto a morrer”. E conta que “o Castello Branco disse pro Mourão que ele se precipitou, e o Mourão disse a ele: ‘Castello Branco, você é um medroso, é um…’”.

Cheia de pudores, Laurita Mourão não completou a frase. Caso tenha visto o documentário só recentemente, na TV da sua “cela” de general na 1ª Divisão do Exército, Braga Netto deve ter dado um salto na poltrona, gritando e completando: “Essa eu sei! Essa eu sei! ‘Cagão’!”.

“Omissão e indecisão não cabem a um combatente. Cagão!”, disse o general Braga Netto a um outro integrante da “rataria” no final de 2022, por mensagem de texto, referindo-se ao então comandante do Exército, general Freire Gomes. Braga Netto tinha percebido que Freire Gomes não daria o passo sem volta, ainda que o Exército tenha dado todos os passos anteriores da trama golpista – da campanha de envenenamento da população contra as urnas eletrônicas à manutenção dos acampamentos golpistas na frente dos quartéis.

Quando a eleição de 1965 foi cancelada e o “mandato” do general Castello Branco foi prorrogado até 1967, Lyndon Johnson defendeu a manutenção de Castelo justificando que de outro modo a linha dura tomaria o poder. “Cagão” e suposto obstáculo à “rataria” de outrora, olha que o general Castello Branco poderia ter sido o general Freire Gomes do seu tempo.

Caso a quartelada de 64 tivesse fracassado, se o general Kruel tivesse cruzado baionetas com o general Mourão, o primeiro ditador da ditadura bem que poderia, quem diria, em vez disso, vai que cola, dizer que nunca embarcaria em aventuras, enquanto ao general Mourão restaria murmurar num aposento da 1ª Divisão do Exército: “omissão e indecisão não cabem a um combatente”.

*Come Ananás

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Em pleno julgamento, Bolsonaro volta a pedir “apoio exterior” para “resgatar” o Brasil da “ditadura”

Bolsonaro agride a soberania nacional e, em mensagem a Trump, defende novamente uma intervenção dos EUA no Brasil.

Jair Bolsonaro (PL) declarou que o Brasil vive sob uma “ditadura de verdade” e defendeu que o país “precisa de apoio do exterior” para superar o que ele chamou de “ditadura” “Temos um problema de ditadura, uma ditadura de verdade. O Brasil não tem como sair dessa situação sozinho. Ele precisa de apoio do exterior”, disse Bolsonaro ao Financial Times, de acordo com a agência Sputnik. A entrevista foi publicada no mesmo dia em que a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) julga a denúncia que poderá tornar o ex-mandatário réu por tramar um golpe de Estado.

A declaração, contudo, pode configurar crime contra a soberania nacional. Conforme consta no artigo 359-I da Lei Nº 14.197, de 1º de setembro de 2021, que tipifica crimes contra o Estado Democrático de Direito e contra a soberania nacional, “negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País ou invadi-lo” resulta em pena de três a oito anos de reclusão.

Ainda conforme a reportagem, Bolsonaro também aproveitou a entrevista para agradecer ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, por ter encerrado as atividades da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). “Obrigado ao presidente Trump por fechar a USAID”, disse Bolsonaro (247).

A agência americana, que tradicionalmente apoia projetos de desenvolvimento em países em desenvolvimento, teve suas operações drasticamente reduzidas no início de fevereiro. Segundo o atual secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio — indicado por Trump para assumir interinamente a chefia da USAID — cerca de 83% dos programas da agência foram encerrados. Rubio alegou que a organização estaria se “intrometendo nos assuntos internos do Brasil” e, por isso, agradeceu ao ex-presidente norte-americano pela decisão.

As falas de Bolsonaro ocorreram em um momento crítico para o ex-mandatário. Derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições presidenciais de 2022, Bolsonaro é acusado de ter articulado um plano para impedir a posse do adversário. Em 8 de janeiro de 2023, sete dias após Lula assumir o cargo, seus apoiadores depredaram as sedes dos Três Poderes em Brasília. Cerca de 2 mil pessoas foram presas pela Polícia Militar e pela Polícia Federal naquele dia.

Em novembro de 2024, a Polícia Federal indiciou Bolsonaro e vários ex-integrantes de seu governo sob a acusação de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, organização criminosa e tentativa de golpe de Estado. O processo encontra-se agora em fase de análise pelo STF, e Bolsonaro poderá enfrentar uma pena de prisão, caso a Corte acate as denúncias e o condene.

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Se o Brasil vive uma ditadura, como acusa Bolsonaro, ele deve adorar

Ninguém é mais fã de tortura, assassinatos, prisões e ditadura sangrenta do que Bolsonaro.

Sejamos justos.

O sujeito passou a vida inteira exaltando torturadores pedófilos, monstros ditadores, casas de tortura e morte, além de outros infernos que só as ditaduras têm.

De repente, o discurso do vigarista mudou. Por que será?

Nada melhor do que a língua para chicotear a própria bunda.

Tentou dar um golpe, o troço solou e, agora, procura consertar suas falas contra o que ele sempre exaltou, enalteceu e fez disso bandeira política.

Vai engolir cada gota de fel que cuspiu há mais de 3 décadas contra quem ele chamava de vagabundo por não pensar como ele.

O fiel entoador de ditadura, agora se diz contra ela.

Como esse mundo da voltas e capota!

Viva o pau de arara de si mesmo!

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Não há qualquer incoerência no fato da Folha defender Bolsonaro, ela apoiou o golpe militar de 1964

A Folha só está adicionando mais um capítulo trágico na sua história carregada de absurdos.

Ainda hoje ela sapecou, em garrafais, a manchete: “Ameaça de Moraes a Cid abre brecha para contestar delação que implicou Bolsonaro”

A Folha jura estar em outro país, que nunca teve Lava Jato e que não trabalhou pesadamente para assar as batatas de Lula na base da covardia jurídica .

Quem se esquece da “ditabranda” que a Folha usou para atacar Dilma, presa e torturada por Brilhante Ustra e cia?

Esse jornalão reacionário, hoje, ainda está pior porque é bem mais banco do que jornal.

Na gestão Paulo Guedes/Bolsonaro, os bancos deitaram o cabelo nos juros pornográficos e a agiotagem correu para o abraço.

A Folha, quando defende Bolsonaro, está defendendo a própria saúde de seus negócios.

Não cobrem coerência de quem jamais teve ou terá.

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Volkswagen manteve por 12 anos fazenda com trabalho escravo financiada pela ditadura

Trabalhadores denunciam mortes e ameaças. Volkswagen rejeitou acordo, e indenização chegaria a R$ 165 milhões.

Por Marcelo Oliveira — Agência Pública

Pela primeira vez, a cumplicidade entre empresas e a ditadura civil-militar de 1964 será objeto de análise da Justiça. O Ministério Público do Trabalho (MPT) ajuizou em dezembro de 2024 uma ação civil pública contra a Volkswagen do Brasil por trabalho escravo e tráfico de pessoas, após ter tentado, por mais de um ano, um acordo com a montadora. O pedido é para que a empresa seja condenada a assumir a responsabilidade pelos fatos e a pagar uma indenização de R$ 165 milhões.

O caso tramita na Vara do Trabalho de Redenção, no sul do Pará, a 190 km de Santana do Araguaia (PA), onde era localizada a fazenda Vale do Rio Cristalino, conhecida como Fazenda Volkswagen. O imóvel ostentava em suas porteiras a logomarca da companhia, que manteve o empreendimento entre 1974 e 1986. A aventura da montadora no mercado madeireiro e agropecuário foi bancada com subsídios da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e financiada pelo Banco da Amazônia S.A. (Basa).

Até o momento, além da Volks, 14 empresas são investigadas pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo MPT por cumplicidade com a ditadura. Apenas um caso, que trata das violações de direitos humanos na fábrica da montadora, em São Bernardo do Campo (SP), resultou em um acordo que prevê o pagamento de R$ 36 milhões em indenizações pela multinacional alemã. Parte desse dinheiro financiou pesquisas coordenadas pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Universidade Federal de São Paulo (Caaf/Unifesp) sobre dez empresas.

Dos casos em andamento, os ministérios públicos já se reuniram com parte das companhias investigadas, caso do porto de Santos, mas ainda não houve anúncio de novos acordos. A Agência Pública contou o que foi apurado pelos pesquisadores na série Empresas Cúmplices da Ditadura.

A Fazenda Volkswagen tinha 139 mil hectares, uma área que corresponde a 90% do município de São Paulo e 15% maior que toda a cidade do Rio de Janeiro. Oficialmente, tinha 300 empregados, entre área administrativa e vaqueiros, que contavam com posto de saúde e até um clube. A lida muito mais pesada, porém, que incluía a derrubada da vegetação nativa para a transformação em pastagens, era realizada por trabalhadores sem vínculo com a Companhia Vale do Rio Cristalino (CVRC), subsidiária criada pela montadora para administrar seu braço madeireiro-agropecuário, cujo diretor-presidente era o alemão Wolfgang Sauer, que presidiu a Volks do Brasil entre 1973 e 1989.

Segundo a ação do MPT, esses trabalhadores sem vínculo, muitos deles menores de 18 anos, eram traficados por “gatos” (recrutadores de mão de obra, que trabalhavam diretamente para a montadora) em vários estados, com promessas de ganhos acima do mercado, e eram levados na caçamba de caminhonetes ou caminhões paus de arara até a fazenda, onde eram vendidos.

Os procuradores concluíram que a Volkswagen “praticou condutas que configuram exploração de trabalho escravo e tráfico de pessoas” e que a multinacional, que controlava a “subsidiária extinta, é responsável pelas violações generalizadas e sistemáticas aos direitos humanos de centenas de trabalhadores rurais que prestaram serviços de roçagem e derrubada na Fazenda Vale do Rio Cristalino”.

Escravidão, comunismo e igreja na floresta
A investigação que gerou a ação foi aberta em 2019 e baseia-se em depoimentos de pelo menos 42 vítimas e 11 testemunhas, a maioria colhida na época dos fatos pelo professor doutor Ricardo Rezende Figueira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que foi padre durante 20 anos na Diocese de Conceição do Araguaia (PA) e integrava a Comissão Pastoral da Terra (CPT). O MPT entrevistou parte dessas pessoas e um “gato”, que admitiu o tráfico de pessoas e a escravidão por dívida.

Esses intermediários mantinham “cantinas”, empórios dentro das fazendas, onde os trabalhadores compravam comida, ferramentas, calçados e lonas para montar as barracas nas frentes de trabalho. Os valores dos produtos seriam maiores que os praticados no mercado. Os trabalhadores relatam também que peões doentes eram tratados no local. Em geral, recebiam injeções ou “azulão” (soro com azul de metileno) na veia e depois eram cobrados pelo serviço.

Após o início das tarefas, além de dormirem em barracas sem vedação, junto a animais selvagens e peçonhentos, sem atendimento médico adequado, e lidando com o risco de malária, endêmica, os trabalhadores recebiam remuneração abaixo do combinado no recrutamento. A situação impedia que deixassem o local, pois, ao pedirem para ir embora, eram informados de que deviam na cantina mais do que o saldo a receber.

Apesar do forte esquema de vigilância com capatazes armados contratados e a vigilância institucional da companhia, alguns trabalhadores conseguiam fugir. Enfrentavam quilômetros de floresta e pediam caronas nas poucas estradas que havia na época. Algumas das vítimas encontraram o padre Ricardo, que ouvia seus relatos, anotava tudo e depois levava as vítimas ao cartório ou à polícia para oficializar os depoimentos.

“Nós éramos vistos pelo governo como comunistas, terroristas, a Igreja era malvista. Como não gozávamos de crédito por parte do Estado, algumas vezes nós levávamos os trabalhadores para prestar depoimento em cartório ou na própria polícia”, afirmou Figueira.

“Eu tinha muita vontade de chorar”
Os depoimentos apontam quatro casos de morte por omissão de socorro (dois trabalhadores por malária sem tratamento adequado e dois bebês), quatro casos de trabalhadores executados para dar exemplo aos demais, sete casos de agressões, um estupro e um desaparecimento.

Raimundo Batista de Souza conta que foi traficado para a Fazenda Volkswagen aos 14 anos, em 1984, junto com os irmãos Raul e Juldemar e outros jovens de Porto Nacional (TO). “Fomos de pau de arara num caminhão para Santana do Araguaia. Depois de uns dias de trabalho, o gato deu a informação que eu e meus irmãos iríamos ser separados. Entendo que eles queriam evitar que os trabalhadores que se conheciam se unissem para reclamar das más condições”, lembra.

“Eu tinha muita vontade de chorar; lembrava de casa, com saudade dos pais, as notícias de Raul zeraram, e eu pensava coisa ruim. No trabalho, adoeci e consegui chegar na sede da fazenda e me deram o tal azulão na veia, aplicado pelo cantineiro. Ficamos [Raimundo e Juldemar] quase um mês doentes, comendo comida ruim da cantina. Comia pouco e fiquei tão fraco que desmaiei várias vezes. Eu tremia muito”, contou Souza em depoimento ao MPT.

“Juldemar nunca se recuperou plenamente. Ele voltou a trabalhar um tempo, mas piorou muito e foi aposentado e tomava remédios psiquiátricos”, finalizou o homem sobre o irmão, que morreu em junho de 2021.

História de poucos e com pouco espaço na imprensa
Aos poucos, os relatos dos trabalhadores que fugiam chegavam à imprensa local, depois, com o tempo, começaram a chegar à imprensa nacional. Quando o caso estourou na imprensa alemã é que algumas investigações começaram a avançar no Brasil, tocadas por parlamentares de oposição à ditadura.

Em 1983, uma comissão mista de parlamentares, jornalistas, sindicalistas e o padre estiveram na fazenda a convite do presidente da Volks, Wolfgang Sauer, que fez uma visita ao governador do Pará na época, Jader Barbalho, que havia mandado a Polícia Civil do Pará investigar o caso.

Apesar da visita a convite e do evidente medo dos trabalhadores de contarem algo mais comprometedor, os integrantes da comitiva entrevistaram dois gatos que atuavam na fazenda. Um deles, Francisco Andrade Chagas, o Chicô, admitiu que ele e seu irmão, que administrava uma cantina, andavam armados e que os peões que tentavam fugir eram amarrados e entregues à polícia, onde recebiam “sermões”.

Os gatos ouvidos pela comitiva se referiam aos trabalhadores como “vagabundos”. Questionado sobre a violência utilizada para impedir que trabalhadores deixassem a fazenda, a comitiva registrou que o então diretor da fazenda Friedrich Brügger, designado por Sauer para acompanhar as oitivas, disse: “Não é problema meu”. Um relatório com sugestões para coibir a violência foi elaborado, mas não há registro de que tenham sido colocadas em prática.

Entre os mais de 50 depoimentos, há apenas dois casos de trabalhadores que conseguiram sair pela porta da frente. Um é o de um grupo de cinco trabalhadores, recrutados ainda adolescentes, de Luciara (MT), que inventaram ter se comprometido com um coronel para se alistar no serviço militar. “O gato ficou assustado, pois não queria ter um problema com o Exército”, Figueira contou à Pública.

O segundo caso é contado pelo trabalhador João Aires da Silva, traficado para a Fazenda Volkswagen aos 17 anos. Segundo ele, um colega, Divino Ferreira Matos, conseguiu licença para buscar tratamento para o filho recém-nascido. A mulher, cujo nome não é mencionado, deu à luz sem ajuda médica em um brejo. A criança, conta Aires, estava doente. O bebê acabou não resistindo. Diante da oportunidade de deixar a fazenda, o casal acabou deixando tudo para trás, inclusive um filho de 6 anos. A ação não conta se Divino, a esposa e o filho se reencontraram.

Ditadura é deixada de lado, mas acordo segue longe de concretizado
Apesar da intrínseca relação entre a Volks e a ditadura e o fato de que a fazenda só existiu graças ao apoio do governo militar, o MPT optou por não abordar diretamente o relacionamento da montadora com a ditadura nessa ação.

“Nesse caso, como não teve uma participação direta da ditadura em episódios de repressão e perseguição de trabalhadores, a gente fez uma opção de não tratar sob o enfoque da ditadura”, afirmou o procurador do trabalho Rafael Garcia Rodrigues, um dos autores da ação.

A Pública consultou tanto o TAC assinado em 2020 quanto o relatório final da investigação sobre a Volks. Nenhum dos documentos versa sobre qualquer atividade da companhia ou subsidiárias da montadora na Amazônia.

A ação do MPT foi ajuizada em 5 de dezembro de 2024, e o juiz Otavio Bruno da Silva Ferreira, da Vara do Trabalho de Redenção, designou audiência de tentativa de conciliação online para o dia 24 de janeiro e atendeu a pedido do órgão para tramitação prioritária do processo. A Volkswagen pediu o adiamento da audiência de conciliação, o que foi negado pelo juiz. Em 16 de dezembro, a Volks solicitou que a Justiça do Trabalho do Pará seja declarada incompetente para atuar no caso. O juiz cancelou a audiência de conciliação e pediu a manifestação do MPT.

O MPT afirma ter se reunido cinco vezes com a montadora entre 2022 e 2023 em busca de uma conciliação. Em março de 2023, a Volks anunciou sua saída das negociações. Segundo a ação, a montadora nega responsabilidade no que foi apurado pelo MPT e sustenta que, ainda que os fatos fossem verdadeiros, não estariam abrangidos pelo TAC celebrado em 2020 com MPF, Ministério Público de São Paulo (MPSP) e MPT. “O acordo diz respeito às perseguições políticas e ideológicas a ex-trabalhadores da empresa durante a ditadura militar, o que não se confunde com o objeto da presente demanda”, afirma o MPT.

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Gustavo Petro eleva o tom contra os EUA em carta a Donald Trump: ‘Resisti à tortura e resisto a você’

Presidente da Colômbia disse que os EUA podem tentar um golpe ‘como fizeram com Allende’, mas que o governo vai resistir.

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, se posicionou neste domingo (26) contra as ameaças do chefe do Executivo dos Estados Unidos, Donald Trump, de aumentar as tarifas contra produtos colombianos. Em carta publicada nas redes sociais, o mandatário afirmou que os EUA “não dominarão” os colombianos e que o “bloqueio não assusta” Bogotá.

No texto, Petro afirma também que “não gosta do petróleo dos EUA” e que Trump vai acabar com o mundo com a sua “ganância”. Ele ainda conclui afirmando que a Casa Branca pode tentar dar “um golpe de Estado” e repetir o que foi feito com o ex-presidente chileno Salvador Allende, mas que fracassará ao tentar enfrentar o povo latinoamericano.

“Com a sua força econômica e arrogância, pode tentar um golpe de Estado como fizeram com Allende. Mas eu morro na minha lei, resisti à tortura e resisto a você. Não quero traficantes de escravos perto da Colômbia, já tivemos muitos e nos libertamos. O que quero ao lado da Colômbia são os amantes da liberdade. Se você não puder me acompanhar, irei para outro lugar. A Colômbia é o coração do mundo e você não entendeu”, disse no texto.

As falas vem na esteira de uma troca de declarações entre os dois mandatários, depois que o colombiano rejeitou receber dois aviões militares com colombianos deportados dos EUA. Segundo o mandatário, os colombianos não podiam ser tratados como criminosos, já que o direito à migração está previsto no direito internacional. Em resposta, o governo estadunidense ameaçou impor tarifas de 25% aos produtos colombianos, caso as deportações não fossem aceitas.

Os dois governos negociaram e chegaram a um acordo ainda no domingo (26). Segundo a secretária de imprensa da Casa Branca, Karoline Leavitt, as tarifas e sanções financeiras impostas pelos EUA serão suspensas temporariamente. No entanto, as sanções de visto contra autoridades colombianas, bem como as inspeções alfandegárias mais rigorosas de cidadãos colombianos e navios de carga continuarão em vigor até que o primeiro avião com deportados chegue à Colômbia.

Petro também disse na nota que os EUA não gostam da liberdade dos colombianos e que o seu governo não vai se “ajoelhar” frente à política da Casa Branca. Ele afirmou também que, se o governo estadunidense coloca tarifas de 50% ao “fruto do trabalho humano”, Bogotá também iria fazer o mesmo com os produtos dos Estados Unidos.

“A Colômbia agora deixa de olhar para o Norte, olha para o mundo. O nosso sangue vem do sangue do Califado de Córdoba, da civilização daquela época, dos romanos latinos do Mediterrâneo, da civilização daquela época, que fundou a república, democracia em Atenas. Nosso sangue tem os negros resistentes transformados em escravos por você. Na Colômbia é o primeiro território livre da América, antes de Washington, em toda a América, lá me refugio nas suas canções africanas”, disse.

Em seu texto, o presidente também fez referências a lideranças históricas tanto latinoamericanas, como o liberador Simón Bolívar, quanto intelectuais estadunidenses como Noam Chomsky. Segundo Petro, esses são exemplos de figuras que ajudaram e ajudam a pensar possibilidades para os povos americanos.

Ele afirmou também que o “bloqueio não assusta” o governo colombiano e que o país está “aberto ao mundo” para construir a liberdade.

“Seu bloqueio não me assusta; porque a Colômbia, além de ser o país da beleza, é o coração do mundo. Eu sei que você ama a beleza como eu, não a desrespeite e ela lhe dará sua doçura. A Colômbia está aberta ao mundo todo a partir de hoje, de braços abertos, somos construtores de liberdade, vida e humanidade”, concluiu.

*BdF

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Os mesmos “democratas” que foguetearam a queda do muro de Berlim, comemoram o muro da cracolândia

Ainda guardo na memória uma cena macabra que tive o desprazer de ver em frente a escola pública que estudava.

Eu, com meus 14 anos, fique traumatizado vendo 9 corpos amarrados um ao outro com arame farpado e um cartaz do grupo de extermínio da ditadura “esquadrão da morte”

Naquele dia, nem consegui dormir direito.

Os detalhes da cena bárbara tinham os itens básicos dos muitos outros grupos de extermínio espalhados pelo país. Um troço horrendo.

Mas a curiosidade sobre o motivo daquela chacina era grande.

Então a notícia que corria era que todos estavam de alguma forma envolvidos com uso ou tráfico de drogas.

De lá para cá, o consumo e venda explodiram e a repressão também, mostrando que esse tipo de política, mais que enxugar, virou uma gigantesca fábrica de gelo

Nessa última semana chega a notícia que Nunes, prefeito de São Paulo, erguer uma muralha para isolar a cracolandia do resto da cidade, anunciando uma tragédia ainda maior sobre a relação do Estado com a questão complexa das drogas.

O que se pretende com isso?

40 metros de muro vão dar conta de que nesse gigantesco universo que envolve o uso e o tráfico de drogas?

A realidade nua e crua mostra que o caminho para lidar com isso, é diametralmente oposto.

Mas o discurso fácil para questões complexas sempre foi a escolha dessa direita fascista.

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Quem apoiou golpes, ditadura e fraude eleitoral, foi a Globo, não Boulos

Como era hábito na ditadura no Brasil, Lula, então como líder sindical e frontalmente contra a ditadura, foi parar nos porões, na época comandada por João Batista Figueiredo, esse que, na foto em destaque, aparece de braços dados com Roberto Marinho.

Como Roberto fez com todos os ditadores militares com seu apoio irrestrito àquela barbárie imposta no Brasil por 21 anos.

Essa história dos Camarotti e das Natuzas da Globonews, não conta, porque funcionam como garçons que seguem o script dos poderosos filhos de Roberto Marinho, que hoje tocam no mesmo diapasão que o pai, o império Globo.

Na verdade, a Globo quer dar cabo dessa  história, como não consegue, faz recortes, transformando, na telinha dos Marinho, a história do Brasil em picadinhos como um petisco bem temperado para manipular a sociedade brasileira, fingindo que não lembra dos 21 anos de apoio ao golpe e à ditadura militar, o golpe em Dilma, a prisão sem provas de Lula, em plena democracia, por um juiz corrupto e ladrão, que montou com Bolsonaro a maior fraude eleitoral da história do Brasil que a Globo fingiu não ver.

Então, quando esse povo do jornalismo da Globo abrir a boca para falar em democracia como se fosse a prova suprema do que é ou não democrático, dirija o indicador para o próprio fundilho da emissora para saber quem são, historicamente, os lacaios do Brasil, ao invés de dizer que Lula ou qualquer político por ele apoiado, como é o caso de Boulos, apoia uma suposta ditadura de Maduro na Venezuela.

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O resgate de um diário: Mércia Albuquerque e a resistência à ditadura

Nos 60 anos do golpe militar, anotações de advogada viram livro e inspiram monólogo de Andrea Beltrão.

Em 2 de abril de 1964, militares amarraram Gregório Bezerra à traseira de um jipe e o arrastaram seminu pelas ruas do Recife. Preso nas primeiras horas do golpe, o ex-deputado foi espancado e exibido como um troféu do novo regime. A brutalidade chocou a jovem advogada Mércia Albuquerque, que presenciou a covardia contra o velho comunista.

“Gregório, apenas com um calção preto e uma corda de três pontas amarrada no pescoço, era arrastado por soldados, seguidos de perto por um carro de combate, com pés que haviam sido banhados em soda cáustica, sangrando”, registrou Mércia. Naquele dia, ela tomou uma decisão: abandonaria o emprego para defender presos políticos.

A advogada virou referência para vítimas do arbítrio em todo o Nordeste. Denunciou torturas, peitou coronéis, ajudou a localizar desaparecidos vivos e mortos. Para aguentar o tranco, despejou suas angústias e num diário secreto, recém-publicado pela Editora Potiguariana. O livro inspira “Lady Tempestade”, monólogo de Andrea Beltrão que tem lotado todas as sessões no Teatro Poeira.

“As prisões continuam indiscriminadamente, revestidas de imensa violência”, escreve Mércia, em outubro de 1973. “O pânico domina o Recife, um terror envolve as universidades. As famílias intranquilas, sem segurança”, prossegue, dias depois. “Não sei até quando vai durar essa chacina”, desespera-se, no mês seguinte.

O leitor acompanha a advogada em peregrinação por cadeias, hospitais e necrotérios. Testemunha sua revolta com os maus-tratos aos presos, que recebiam comida podre e tinham pertences roubados pelos carcereiros. “O DOI é um lugar horrível”, anota. “Os percevejos infestam as celas, o mau cheiro é terrível, restos de fezes, sangue, vômitos dentro da cela”.

Mércia narra o calvário de “homens transformados em bagaços” em ambientes que compara a campos de concentração. “Presos submetidos a tortura medieval, cortes provocados com tesoura e ponta de faca, queimaduras com cigarros, pau de arara, cadeira do dragão”, enumera.

Ela descreve os torturadores como seres necrófilos, que “vibram com a morte” e “explicam os atos anormais como amor à pátria”. Num momento de alívio cômico, reproduz diálogo com o diretor da cadeia de Itamaracá. “Dr. Ednaldo me disse que mais lhe dói a morte de um cavalo do que a de um preso político. Ao que repliquei: ‘Faz muito bem em defender sua espécie. Eu defendo a minha, os homens’”.

A altivez lhe traria problemas com a repressão. Mesmo sem se envolver com a política, ela foi presa 12 vezes. Numa, foi ameaçada com revólver na cabeça. Em outra, arremessada para fora de uma viatura. “Não me arrependo de nada”, escreve a advogada, que morreria em 2003.

Entre testemunhos de coragem, o diário também revela passagens de fraqueza e desespero. “Desejo ficar só para chorar, sinto uma tristeza imensa e me perco no escuro da minha amargura, da minha descrença em tudo”, anota. Com a saúde fragilizada, ela ouve do médico que só conseguirá engravidar se parar de trabalhar. “Luto pelos filhos dos outros, entram em minha vida, amarguram-me a existência e ainda me privam de ter filhos”, ironiza.

Às vésperas dos 60 anos do golpe, o resgate de Mércia joga nova luz sobre a atuação de advogados que resistiram à ditadura. “Nunca deixei de ajudar quem me procura”, orgulha-se a pernambucana, em novembro de 1973. “Levei a paz, devolvi filhos a pais, dei a alegria antes do Natal a cinco lares”, festeja, ao registrar a libertação de cinco clientes no mês seguinte.

*Bernardo Mello Franco/O Globo