Em 2013, um ano antes de a política ser adotada na universidade, eram 21,3 mil estudantes; em 2020, 36,6 mil. O g1 fez um levantamento com Uerj, UFRJ e Unirio, que mostra resultados da ação afirmativa no perfil dos alunos. É o que revela a reportagem de Filipe Brasil, do G1.
O número de alunos pretos e pardos matriculados na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) cresceu 71% desde que a universidade passou a adotar a política de cotas, em 2014.
Dados obtidos pelo g1 mostram que, em 2013, um ano antes de o sistema entrar em vigor na universidade, a UFRJ tinha 21,3 mil estudantes que se autodeclaravam pretos ou pardos, contra 36,6 mil em 2020.
O sistema de cotas, que estabelece reserva de vagas em universidades para estudantes de escolas públicas, pessoas pretas, pardas e indígenas e pessoas com deficiência, é aplicado há pelo menos 7 anos nas instituições de ensino público superior do RJ.
“Na medida em que, em 100 anos, uma universidade criada para e pelas elites implementa uma política pública que consegue modificar substancialmente sua ocupação étnico-racial, já podemos perceber o quanto avançou na pluralidade e representatividade. Mas ainda há um longo caminho a se percorrer”, afirma a coordenadora da Câmara de Políticas Raciais da UFRJ, Denise Góes.
Além da UFRJ, o g1 levantou dados da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade Federal do Estado do Rio (Unirio), que mostram os resultados da implementação da política ao longo dos anos (veja os números abaixo).
As cotas têm como objetivo reduzir desigualdades étnicas, sociais e econômicas do país que se refletem no acesso da população ao ensino superior.
Lei Federal de 2012, conhecida como “Lei das Cotas”, estabelece o sistema de reserva de vagas nas instituições de ensino federal da seguinte forma:
- pelo menos 50% das vagas devem ser reservadas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas;
- desses 50%, metade deve ser garantida aos estudantes que vêm de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo per capita;
- em cada faixa de renda, as vagas são divididas para autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência.
Ainda de acordo com a legislação, a distribuição das vagas deve ser, no mínimo, proporcional à população desses grupos no RJ, segundo os dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“A cota não é só resgate de uma grave injustiça histórica, a cota é uma oportunidade de termos uma sociedade mais democrática. Locais mais diversos contribuem para reduzir esse discurso do ‘nós contra eles’, para que o país tenha um projeto de desenvolvimento a partir das visões de todos os segmentos, classes, cores e bairros. Então, a cota não é só importante para o cotista, a cota é importante para a democracia”, afirmou o reitor da Uerj, Ricardo Lodi Ribeiro.
Mudança ao longo dos anos
O número de alunos pretos e pardos matriculados na UFRJ desde 2006 demonstra como o acesso ao ensino universitário se modificou ao longo dos anos. Em 2006, eles eram menos de 15 mil alunos (14.887); em 2020, passaram a 36,6 mil estudantes.
De 2006 a 2020, os alunos brancos caíram de 72% para 40%. Nesse mesmo período, os pretos e pardos subiram de apenas 21% para 35%.
“O objetivo das políticas de ação afirmativa é produzir igualdade de oportunidades para dirimir o fosso histórico que se criou com uma abolição de somente dois artigos e que não previu nenhuma política para inclusão dos libertos”, diz a coordenadora da Câmara de Políticas Raciais da UFRJ, Denise Góes.
A maior presença dos estudantes pretos e pardos no ensino superior condiz com a realidade étnica do país.
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, em 2019, 42,7% dos brasileiros se declararam brancos, 46,8% pardos, 9,4% pretos e 1,1% amarelos ou indígenas.
O IBGE pesquisa a cor ou raça da população brasileira com base na autodeclaração. O questionário sobre cor traz as seguintes opções: branca, preta, parda, indígena ou amarela.
Cota como ferramenta de inclusão
Cotista formado em 2016 na UFRJ, Vitor Matos faz atualmente mestrado em políticas públicas em direitos humanos e atua como servidor na universidade. Além disso, integra a Câmara de Políticas Raciais da UFRJ.
Para ele, a política de cotas representa o instrumento mais efetivo de inclusão social de negros desde o fim da escravidão no Brasil.
“Na minha visão, é muito comum as pessoas avaliarem as cotas individualmente, ou seja, o efeito delas na vida de cada indivíduo cotista. Mas, na verdade, as cotas geram um efeito social maior quando esse indivíduo cotista entra no mercado de trabalho e passa a ser uma representação para a sociedade, com uma profissão, e que até aquele momento existiam poucos ou nenhum negro naquela função”, disse.
“Por exemplo, muitas pessoas jamais foram a um médico negro, ou conheceram um servidor público de alto escalão negro, um arquiteto, um engenheiro negro. E a partir do momento em que os negros começam a se formar e ocupar esses espaços, isso gera uma reação em cadeia, um efeito de capilaridade na sociedade, sobre a visão que a própria sociedade vai ter dos negros”, completou.
Uerj: Sistema de cotas é adotado há 18 anos
Na Uerj, o sistema de reserva de vagas começou a ser aplicado em 2003. Entre 2003 e 2020, de todos os alunos que entraram na universidade por meio de vestibular, 30% (27,3 mil) eram cotistas.
Em 2018, uma lei prorrogou a reserva de vagas por mais 10 anos para as universidades públicas estaduais.
Houve a inclusão de quilombolas, além de pretos e pardos, e foram estabelecidos percentuais de:
20% das vagas reservadas para negros, indígenas e alunos oriundos de comunidades quilombolas;
20% das vagas para alunos oriundos de ensino médio da rede pública, seja municipal, estadual ou federal;
5% das vagas reservadas a estudantes com deficiência, e filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço.
De acordo com dados de relatório estatístico elaborado pela Uerj, do total de cotistas, 11,6 mil entraram por meio do sistema e 14,8 mil vieram de escolas da rede pública.
“Hoje em dia, não dá para pensar na Uerj sem o sistema de reserva de vagas. Foi um modelo que tornou a universidade mais plural, mais colorida, e acabou mostrando para aqueles que eram contra que em nenhuma medida as cotas reduzem a excelência acadêmica”, disse Lodi.
“Desde que as cotas foram implementadas, a Uerj só sobe nos rankings nacionais e internacionais de excelência”, afirmou o reitor.
Conclusão e evasão
Dados do relatório da Uerj mostram que, proporcionalmente, 42% dos alunos cotistas concluíram seu curso, enquanto apenas 30% dos que entraram por ampla concorrência se formaram.
Entre os 32,1 mil estudantes que já se formaram na Uerj, 11,6 mil (36,3%) eram cotistas.
Bruno Bordieu, cotista da Uerj formado em 2018 em ciências sociais, afirma que as dificuldades de permanência na faculdade vão além das questões acadêmicas e financeiras.
“Um processo que quase todo mundo relata é que durante a graduação ocorre uma série de desgastes, de distanciamentos e embates com a família. Esse desencontro é muito duro para as pessoas. A dificuldade de você chegar e falar das suas conquistas com seus pais e eles não entenderem”, afirma Bruno.
“A entrada na universidade, para boa parte de nós, negros, representa muito mais do que uma aquisição de conhecimento ou formação. É de fato uma formação humana, uma transformação do que somos. E como grande parte é o primeiro da família a estar nesse ambiente, muitas vezes isso gera conflitos familiares. Eu pensei em desistir em vários momentos. Demorei 8 anos para me formar por causa disso também”, completa o professor, que hoje dá aulas no Curso de Pré-Vestibular do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CPV-CEASM).
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