Não impressiona o que foi revelado neste domingo (7) pela Folha e Intercept, que ajuda a desancar a imagem heroica de Moro criada pela Globo.
Pelo que foi divulgado, só reforça ainda mais o que está sendo dito por vários jornais internacionais, que a Lava Jato age como um esquadrão da morte. Também não há nada de surpreendente nisso, somente sublinha a afinidade ideológica de Moro com Bolsonaro, que sempre fez questão de exaltar as milícias, ditadores, torturadores e grupos de extermínio.
Se amanhã surgir alguma mensagem de Moro sugerindo o aniquilamento ou a decapitação de prisioneiros nessa troca de conversas ocultas com os procuradores da Força-tarefa, também não impressionaria mais ninguém, afinal, a cena animalesca a que o Brasil assistiu há pouco tempo em uma das operações da Lava Jato, a de Sergio Cabral sendo conduzido acorrentado pelos e pés e mãos, faz lembrar as práticas do Estado Islâmico e revela que não há obstáculos éticos ou legais para a tropa de Moro.
O que surgiu hoje a respeito do vazamento de dados secretos sobre a Venezuela ordenado por Moro escancara que ele tem um satânico prazer de praticar o mal pelo mal, uma tara venenosa sem qualquer decência moral para incentivar conflitos e, por consequência, produzir mortes.
Nesse modus operandi de Moro há muito do Marquês de Sade. O que parece mesmo é que a maldade lhe dá o sabor da vitória. Moro parece necessitar de uma focinheira que limite os ataques promovidos por sua raiva, sempre feitos no escuro.
No período em que corria o processo do golpe do impeachment em Dilma, Moro vazava para a Globo e também para a Veja, alguma delação feita dentro do laboratório da força-tarefa pelos próprios procuradores.
Essa simplicidade de raciocínio, resultante de uma conjugação de forças, dentro e fora da Lava Jato, não se limitou ao golpe em Dilma e à prisão de Lula. O imprevisível no caso, foi a solidariedade de Moro e os procuradores da força-tarefa com os golpistas da Venezuela, o que faz parecer que o crime se transformou num vício para a república de Curitiba.
O empresário Léo Pinheiro, que está preso, aguardando há cinco meses que a PGR analise os termos de sua delação premiada para ser enviada a Edson Fachin, relator do petrolão no Supremo, inventou um novo, sei lá como chamar, “tipo judicial” talvez: trata-se da pós-delação. Ele enviou uma carta à Folha em que reafirma as acusações que fez contra Lula em depoimento a Sergio Moro e em que nega que tenha sido pressionado por procuradores ou que tenha mudado versão anterior para ter sua delação aceita. Com a devida vênia, cai na patranha quem quer.
Ainda que procure, ao elencar detalhes do que chama “provas”, ser rigoroso, estamos diante de um caso clássico de gato escondido com o rabo de fora. Você vê aquela cauda ali, em movimentos algo lentos, mas nervosos, e logo conclui: “Na ponta dessa cauda, há um gato”. Miguilim, o de casa, faz muito isso com o objetivo de dar botes benignos, sem ferir, nas pernas dos passantes. Em seguida, sai correndo, aos pulos meio desengonçados, esperando ser perseguido só para se esconder de novo e repetir a operação. Gatos domésticos têm lá suas brincadeiras. Empreiteiros não brincam em serviço.
A carta de Léo, nota-se, é meticulosamente orientada. Há até um errinho ou outro de gramática que conferem o charme da autenticidade voluntariosa ao documento. Emprega-se, por exemplo, o “a”, sem “h”, para indicar tempo decorrido. Além do estado de direito e das garantias individuais, o verbo “haver” é a maior vítima da Lava-Jato. Ok. Advogados que façam o seu trabalho em defesa de seus respectivos clientes. Eu faço o meu em defesa dos fatos.
O empresário afirma, por exemplo: “A minha opção pela colaboração premiada se deu em meados de 2016, quando estava em liberdade, e não preso pela operação Lava Jato. Assim, não optei pela delação por pressão das autoridades, mas sim como uma forma de passar a limpo erros que cometi ao longo da minha vida. Também afirmo categoricamente que nunca mudei ou criei versão e nunca fui ameaçado ou pressionado pela Polícia Federal ou Ministério Público Federal.”.
De saída, noto o tom de contrição e arrependimento, que vi recentemente ser exercitado por Sérgio Cabral, ex-governador do Rio. Um pouco mais histriônico, ele exagerou na dose e até exaltou as grandezas do juiz Marcelo Bretas. Algumas datas se fazem necessárias aqui, não é? Vencida a emoção, o leitor há de se lembrar que a primeira delação de Pinheiro, esta que ele diz ter decidido fazer em liberdade, foi suspensa pela PGR no dia 22 de agosto de 2016. E depois mandada para o lixo. Nunca se soube exatamente o motivo.
No curso da investigação, como revelam diálogos entre procuradores, Pinheiro nunca havia afirmado existir uma conta geral de propina ou que Lula o teria orientado a destruir provas. Isso foi dito apenas em depoimento ao então juiz Sergio Moro no dia 20 de abril de 2017. O empresário não tratava o apartamento de Guarujá como propina.
No dia desse depoimento, Pinheiro estava preso, sim, senhores! Como preso está agora. Só para lembrar: ele conheceu a cadeia pela primeira vez na 7ª fase da Lava Jato, em novembro de 2014. Foi condenado pela Justiça Federal, em primeira instância, a 16 anos e quatro meses de prisão, acusado de corrupção ativa, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Foi posto em liberdade provisória em 2015 e voltou a ser preso no dia 5 de setembro de 2016 por determinação de Sergio Moro. E preso está até agora. Assim, mesmo a primeira delação, aquela que foi anulada, foi feita por um liberto provisório. E, quando a Lava Jato e Sergio Moro vivem fase inédita de descrédito, eis que Pinheiro, grande patriota!, sai em seu socorro.
Trecho da carta de Léo Pinheiro enviada à Folha (Reprodução)
A carta que Léo Pinheiro envia à Folha tem um elemento inescapável que a torna inútil até como peça de proselitismo. Ele aguarda ainda que a PGR envie a sua delação para homologação. Venham cá: ele teria como afirmar algo diferente disso? Se dissesse que fez a delação sob pressão e que alterou versões no curso das investigações, o que aconteceria? A sua delação iria para o lixo. Como está, pode ser homologada pela máquina automática de homologar delações que Edson Fachin deve ter escondida em seu gabinete.
Há outros elementos que chamam a atenção. Um dos que mais se destacam, além da confissão de que está decidido a ser uma pessoa boa, é a defesa que faz do Ministério Público Federal e da Polícia Federal. A escrita será certamente usada como material de propaganda para enfrentar a onda de descrédito que colhe a Lava Jato dentro e fora do país. Parece piada, mas é assim: apela-se àquele que deu o testemunho que sustentou a condenação de Lula — se falasse como delator, teria de apresentar evidências da conta geral de propina e da suposta ordem dada pelo petista para destruir provas — para dar um segundo testemunho que a justifique.
Celebre-se ainda a prodigiosa memória do prisioneiro. Nem que estivesse com todos os autos em mãos e o estudasse dia e noite na cadeia, conseguiria aquela riqueza de detalhes — todos, notem bem!, a endossar a versão de que o tal tríplex de Guarujá pertencia a Lula. Adicionalmente, há a menção ao sítio de Atibaia, também debitado na tal conta geral de propina de que o Ministério Público Federal nunca tinha ouvido falar. Aí já se tenta cuidar do segundo processo mais avançado do petista, com o recado sendo mandado ao TRF-4.
Mais surpreendente ainda na elefantina memória de Pinheiro: não apenas se lembra das supostas provas que ele mesmo forneceu como tem na ponta da caneta as que foram entregues por terceiros. Trata-se mesmo de um caso a ser estudado pela ciência.
O chato nessa história é que, para condenar Lula, o MPF deveria ter apresentado a Moro provas de que o tríplex, se propriedade do petista, tinha como origem os contratos celebrados pela OAS com a Petrobras, o que justificaria o caso estar na 13ª Vara Federal de Curitiba. Mas o então juiz escreveu: “Este juízo jamais afirmou, na sentença ou em lugar algum, que os valores obtidos pela Construtora OAS nos contratos com a Petrobras foram usados para pagamento da vantagem indevida para o ex-Presidente”.
Pinheiro nega que a condição de preso e de futuro delator esteja na raiz daquele seu depoimento a Moro. E agora certamente há de negar que, na raiz dessa carta, esteja o mesmo presidiário que aguarda a homologação da segunda delação e que vê aumentar o risco de que seja rejeitada em razão das revelações feitas pelo site The Intercept Brasil.
Um criminoso confesso foi escalado para atestar a lisura da Lava Jato e de Sergio Moro. Só o fundo do poço os contempla.