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Sobre o belíssimo “AmarElo: É tudo pra ontem” de Emicida

“Contribuição Bantu na Música Popular Brasileira: perspectivas etnomuseológicas”, do congolês Kazadi Wa Mukuna, é um dos melhores livros sobre a nossa música ao lado dos livros de Mário de Andrade.

Durante a nossa pesquisa para a produção do projeto musical Vale dos Tambores, nos valemos muito de suas profundas reflexões e afirmações sobre a formação de nossa música, a contribuição Bantu e como o Vale do Paraíba foi determinante nisso tudo. Afinal, o Vale dos Tambores buscou, através de imagens e informações históricas, além das minhas composições, tratar do universo do Choro e do Samba a partir dessa que é uma das principais matrizes de suas construções.

Segundo Kazadi, a música tem um universo em comum. O tempo, as harmonias e melodias são as mesmas. Agora, a formulação de cada uma dessas músicas, depende da cultura de onde a música foi criada.

Essa foi a síntese que vi no belíssimo “AmarElo: É tudo pra ontem” de Emicida.

Segundo Kazadi, a música é uma expressão humana dentro do tempo e do espaço. Para entender o porquê dessa música ser do jeito que ela é, tem que entender o comportamento de quem criou a música. E parece que foi essa a principal mensagem que Emicida quis passar.

Mário de Andrade, muito citado no documentário do Emicida, disse certa vez, quando foi chamado para ser uma espécie de parecerista que selecionaria as melhores obras eruditas para serem contempladas com uma premiação, não aceitou e explicou: só aceitaria se fosse para premiar Camargo Guarnieri, pois conheço a alma de sua obra. O motivo e o sentido do que eu escutaria a partir da fonte, porque acompanho de perto cada passo desse compositor há muitos anos e conheço o sentido de sua obra.

Emicida oferece um leque de expressões negras dentro da cultura brasileira, mas num contexto atual, modernizado.

Muitas ele fala, outras não.

Seu som, por exemplo, pelo menos o que eu ouvi no documentário, tem muito de herança da inenarrável Banda Black Rio, assim como da fantástica pianista Tania Maria. Basta ouvir “Funky Tamborim”. Da mesma forma como muitas das expressões da música negra no Brasil que metabolizaram antropofagicamente o som do mundo mantendo a memória ativa dos tambores brasileiros, que já não eram mais africanos, apesar de terem a matriz africana como ponto de partida.

O próprio Jongo em que os grandes versadores eram considerados durante os séculos de escravidão no Brasil como os “feiticeiros da palavra” por versarem em metáforas para os senhores da Casa Grande não entenderem o que eles falavam e as mensagens de força, resistência e fuga que continham naqueles versos.

Tudo isso está na música que Emicida apresenta, assim como o Choro e o Samba representado no trecho de um documentário aonde aparecem a santíssima trindade da música popular brasileira, Pixinguinha, Donga e João da Baiana com a Velha Guarda do Samba.

Mário de Andrade afirma que, no Brasil a melodia e a rítmica caminham na mesma pegada. Uma alimenta a outra, daí seu magnetismo, porque a melodia é feita para alimentar o ritmo e este, feito para alimentar a melodia.
Isso está no som que Emicida presenteia a quem assiste seu documentário.

Sobre as mensagens, a mais poderosa é a que fala do amor, da união, da soma e da capacidade que isso tem de produzir caminhos independentes que beneficiem a coletividade.

Kazadi considera importante separar o conceito de filosofia da existência entre africanos e europeus, pois isso faz parte e sustenta a oralidade ou ancestralidade no sentido de não se limitar ao momento, tem raízes. Esse conceito se projeta aos dias atuais: o europeu herdou a filosofia: eu penso, eu sou (físico e individual). O africano diz eu pertenço, portanto eu sou, no sentido (físico e conceitual); minha existência só tem significado enquanto eu e você estamos; eu sou porque você é, estou aqui porque você está.

Num momento em que o racismo recrudesce no Brasil contra o protagonismo dos negros nos espaços institucionais, a receita de Emicida é muito bem vinda.

*Carlos Henrique Machado Freitas

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Cultura

Ubirany e o repique de mão que revolucionou a música brasileira

Quando Ubirany ousou aproximar ainda mais os terreiros dos palcos com seu inédito repique de mão, ele incendiou o país.

A memória afetiva que cada brasileiro carrega consigo foi despertada e contagiou cada canto desse país que tem no tambor seu centro de gravidade cultural.

Uma nova chama da ancestralidade foi acesa nos espaços institucionais e todos os elementos sensoriais e emocionais que estavam guardados no coração do povo explodiram em repiques dos mais variados e ricamente criativos.

A batida de Ubirany está para o repique de mão, assim como a mão direita de Baden está para seu inigualável violão que encantou o planeta.

São gatilhos específicos, como os sons que aconteceram no passado da rica história musical do país, aos quais o maestro Camargo Guarnieri chamava de “Espírito do Tempo”, é quando uma geração passa para outra essa memória através de um fio de prata invisível.

Viva Ubirany! Viva o repique de mão! Viva o Fundo de Quintal!

*Carlos Henrique Machado Freitas

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Cultura

A alcova trágica do mercado cultural

A Globo não se meteria no mundo das artes através da Fundação Roberto Marinho não fossem os lucros e louros políticos que pode extrair de seus museus e congêneres.

Quem vai a um museu dos Marinho, e são muitos, com a intenção de conhecer as obras de grandes pintores, vai se estarrecer com o mundo fantástico de um parque temático cheio de luzinhas, laser e outras bugigangas tecnológicas em moda. Mas isso é um atestado da inépcia que passam os nossos entendidos em coisas da arte, uma meia-dúzia de libertadores do pensamento contemporâneo que fermenta a ideia de que a arte e a cultura têm necessidade de ganhar dinheiro.

A cultura, dentro dessa alcova, não parte da obra, mas sim do capital e, consequentemente, nada do que é original terá poder de explicar-se diante de um ambiente impregnado de mesmices, de cópias tiradas de um estado de letargia saído da cabeça de técnicos em diversão, cores e tons que produzem leves efeitos em edições de um pastiche que espelha a própria organização tecnocrata que move o tal mercado cultural que, atualmente, recebe edições e triunfalismos de magníficas expressões como, economia da cultura e economia criativa.

Se assistimos a essa risível participação de artistas brasileiros ao fascismo comandado por Bolsonaro no mundo da cultura e das artes, isso não é sem motivo, essa chamada classe artística foi docilizada pela ideia de uma produção cultural embebecida e completamente embriagada pela lógica trazida na alma dos editais, onde a formulação de uma planilha é quesito maior para avaliação de uma comissão.

O que se tem são cabeças burocratizadas, prontas para aceitarem as normas criadas por instituições como Itaú Cultural, o que por si só, é um nonsense total, ou é Itaú, ou é cultural, os dois não cabem no mesmo lugar. O mesmo pode-se dizer de uma fundação cultural que leva o nome de um dos maiores inimigos da cultura brasileira, Roberto Marinho.

Mas essa gente trata esse universo com magnífica maestria, emprestando seu know how por uma longa tradição de negociatas.

Assim, o capital e não a obra artística, fica perfilado com o convencionalismo ao qual a gestão pública de cultura se impôs. O resultado é, nada sairá desse altar que tenha profundidade maior do que a de um pires.

*Carlos Henrique Machado Freitas

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Cultura

Globo, 55 anos em campanha permanente contra a cultura brasileira

Um dos principais, senão o principal crime que a Globo comete no Brasil é a tentativa de massacre da cultura brasileira.

Não por acaso, se não é ainda a proponente que mais capta recursos da Lei Rouanet, via Fundação Roberto Marinho, é, sem dúvida, uma das principais captadoras desse excremento neoliberal criado por Collor, para forjar uma imagem de mãe das letras e das artes com seus museus mantidos com dinheiro público, através de impostos pagos pelos brasileiros para, em diferentes frentes, monopolizar os rumos da cultura institucional no país.

Mas a principal guerra da Globo sempre foi contra a cultura do povo brasileiro, tentando enfiar goela abaixo da população uma forma de vida norte-americana, mergulhando o Brasil numa falsa identidade para dissolver a base cultural do povo e advogar em nome da cultura dos EUA.

Esse neoliberalismo, que tem a Globo como principal palanque pró-imperialista e reacionário, sempre tratou a cultura do Brasil como mero detalhe, transferindo para a indústria de cultura de massa americana a prerrogativa de programar a vida dos brasileiros a partir dos interesses norte-americanos, numa subserviência direta naquilo que é mais caro ao povo. Esse é o conceito de globalização cultural que a Globo carrega em seu DNA.

Uma das consequências nefastas disso é a valorização apenas do que é produzido pela indústria cultural em detrimento da cultura espontânea do povo brasileiro.

O que se sabe é que a Globo elevou o Brasil a um dos países em que a indústria cultural, através de sua massificação, deitou as raízes mais fundas e, por isso mesmo, produziu durante décadas estragos de monta no universo político, porque a partir da cultura de massa, promovida pela Globo, tudo se tornou objeto de manipulação.

Por isso, no caso da cultura, o debate da esquerda tem que ir mais longe, porque a esquerda atualmente, mostra-se extremamente econômica quando o assunto é destinado a um debate profundo sobre a importância da cultura brasileira na vida política do país.

O que salva é que na base da sociedade a cultura é mais pura e profunda, capaz de enfrentar e vencer a indústria de massa que tem na Globo seu principal pilar.

O conceito de cultura no Brasil está intimamente ligado às camadas menos favorecidas da população que sustenta a ferro e fogo as nossas principais expressões culturais, mantendo-as autênticas, íntegras e libertas, mais que isso, a cultura de base não é uma manifestação individual, mas coletiva que funde nossas heranças ancestrais com o nosso modo de ser do presente, o que resulta em relações profundas entre os brasileiros e o Brasil.

O papel da Globo é deformar a imagem dessa riqueza cultural para, de maneira vil, abrir a porta do enraizamento de gostos e hábitos impostos pela cultura imperialista no Brasil, tentando tirar a autoridade moral, intelectual e artística de diversas formas de expressão e criatividade humana que o Brasil tem de mais rico no mundo.

O trabalho da Globo para a indústria cultural da qual é parte, é acionar estímulos em holofotes deliberadamente a caricaturas culturais com uma vestimenta universalista em busca da servilidade do povo aos modelos e modas importados extremamente rentáveis aos EUA.

De quebra, tentar o máximo possível manter a identidade cultural do Brasil fragmentada, dissociada da própria vida política e, assim, divididos, transformar-se na pedra de toque da indústria cultural que lucra financeiramente na forma, através da venda de conteúdos, produzindo com sucesso intelectual a dispersão política da sociedade para que os interesses da oligarquia nacional e, sobretudo, a global mobilize as nossas ações políticas.

Por isso, não há mais o que esperar para fazer um grande debate sobre a cultura brasileira e o papel nefasto que o grande império da comunicação no Brasil criou para, cada vez mais, de forma artificial, introduzir a mediocridade direcionada à classe média para produzir as condições ideais das manifestações de ódio que brotaram desse monopólio midiático e que ganharam difusão nas redes com maciças mensagens antipolíticas que interessam ao sistema do qual a Globo é parte.

 

*Carlos Henrique Machado Freitas

 

 

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Cultura Matéria

Os tecnocratas transformaram a cultura institucional em matadouro da cultura brasileira

Com os olhos voltados mais para a caderneta de uma caricatura de política pública de cultura do que para as crônicas humanas extremamente ricas que a cultura brasileira revela, as musas institucionais que chegaram na garupa do neoliberalismo caricaturam as nossas ricas e diversas manifestações, abrindo, como isso, um fosso entre o que se chama de cultura institucional e a sociedade brasileira.

Tudo mudou a partir do tribunal da lei Rouanet da era Collor que, antes mesmo de se avaliar o valor de uma obra de arte, seja na música, na literatura, nas artes cênicas, as artes plásticas, na cultura popular, entre outras, avalia-se a tecnicalidade de uma planilha. Isso é o bastante para dizer que tipo de tragédia uma coisa como essa produz.

Mas o que piora ainda mais o quadro é que esse embuste técnico serviu como padrão gerencial a partir do Ministério da Cultura, hoje, Secretaria Especial de Cultura e em secretarias de cultura de estados e de municípios em que avaliadores de projetos culturais são orientados a, primeiro, analisar com pente fino todo um calhamaço de regras tecnocratas para, se aprovado, o projeto, do ponto de vista gerencial, entrar para a análise rasa e de muito menos importância o conteúdo de um projeto cultural ou de uma obra de arte.

É a total inversão de valores em que o que de fato constitui a emoção está limitado e até dispensável dentro dessa teia de discriminação cultural pela lógica da tecnicalidade.

Na verdade, isso buscou matar a expressão de uma obra, seja de que área for, tirar-lhe todo o conteúdo intelectual para que o alinhamento com o critério técnico se evidencie.

A isso ainda chamam de democracia cultural. É só rever o balanço histórico do que tal ação ou falta dela, tem produzido para concluir que valores estão contidos nessa maçaroca de regras e leis genuinamente tecnocratas e neoliberais.

Com base nisso, não há discussão, debates sobre o papel das políticas públicas de cultura no Brasil, não importando que uma administração seja de direita ou de esquerda, todas seguirão o esperanto institucional de cultura.

Isso não deixou de acontecer, mesmo num momento em que nunca se viu tantas conferências e fóruns Brasil afora para, na realidade, ressoar os clarins da mesmice, a partir de uma central do mercado aonde recursos públicos são destinados à mediocridade tarefeira e à obra de arte é reservado o limbo, numa criação de direitos artificiais em que a verdadeira produção artística, quando muito, recebe resíduo ou migalha de tudo o que acontece em torno do que foi estabelecido como política cultural.

Formas de expressão, pesquisas ou investimento no humano na construção de uma manifestação artística é simplesmente desconsiderado se não apresentar uma amesquinhada planilha que funciona como solução para os gestores e segregação para a arte, sem que haja qualquer espaço para discussão desse verdadeiro absurdo.

Por isso o Brasil vive um momento em que a liberdade criativa nunca foi tão funesta por enfrentar problemas burocráticos nas quatro linhas do jogo institucional, porque nesse universo, a questão central não é a cultura brasileira, mas a barbárie que lubrifica um mundo tosco da chamada gestão cultural.

Por isso urge que a esquerda debata a questão cultural de uma maneira inversa à lógica imposta pelo estatuto do neoliberalismo.

 

*Celeste Silveira e Carlos Henrique Machado Freitas

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Cultura

Aressa Rios: A Folia de Reis no Vale do Paraíba

A origem histórica da Folia de Reis brasileira, e as que se manifestam e se apresentam no estado do Rio de Janeiro não se diferem nesse aspecto, é basicamente a origem da Festa de Reis difundida pela América Latina.

No Brasil adquire algumas especificidades, como em cada um dos países em que esse festejo se mantém vivo, não só por se tratar de um país distinto que, assim como os outros países, carrega suas especificidades culturais, mas porque dentro de nossa formação cultural, passamos por um processo de colonização basicamente português, diferente do restante da América Latina em que a presença espanhola foi mais marcante.

A História

A Folia de Reis foi trazida para o Brasil no século XVI através dos portugueses e já naquele tempo, reuniam-se grupos de homens, cancioneiros do catolicismo ibérico inspirados na jornada natalina das pastorinhas dentro da qual aparecem as figuras dos Reis Magos e que também pertence ao ciclo natalino. Aqui chegando, mesclou-se à cultura indígena (nativos) e africana (dos negros trazidos da África no período da escravidão – século XVI), o que hoje se reflete claramente dentro da Jornada através da figura do palhaço. Tornou-se aqui uma manifestação popular que pode ser considerada uma forma de expressão do teatro popular.

No estado do Rio de Janeiro, principalmente no Vale do Paraíba, a história das Folias de Reis se relaciona diretamente com nosso passado colonial. Por ser o Vale do Paraíba, formado por parte dos municípios dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, esta região apresenta-se como testemunho e sede de fatos que mudaram o curso da história de nosso país e é como uma síntese, que ilustra o processo de colonização ocorrido no Brasil.

O Vale do Paraíba, que engloba parte do estado do Rio de Janeiro, região eixo no processo de transição de uma economia agropastoril para uma economia de base industrial, deste ponto de vista, pode ser lido como uma síntese da formação cultural brasileira. É justamente nessa região que vão emergir as diversas manifestações da cultura popular, entre elas a Folia de Reis, que são o testemunho vivo, performando a cada dia pelas ruas, a síntese do processo da formação cultural brasileira.

O ritual

A Folia de Reis é uma manifestação da cultura popular brasileira que a cada ano reconstrói a passagem bíblica que narra a jornada dos Reis Magos, guiados pela estrela de Belém, rumo ao Menino Jesus nascido. Nas mãos do povo, os textos bíblicos adquirem novas feições. São interpretados, relidos e adaptados pela sabedoria e religiosidade popular, que opera constantes transformações.

Encontrada, principalmente, nos estados da região sudeste, entre eles o Rio de Janeiro, mas ocorrendo também em outras regiões do país, a Folia de Reis inicia seu ciclo ritual no dia 24 de dezembro (véspera de Natal), quando sai à meia-noite para só retornar no dia 6 de janeiro, Dia de Reis.

No estado do Rio de Janeiro, as jornadas costumam sair novamente no dia 7 de janeiro ou permanecer direto no giro, para cumprir a jornada de São Sebastião, retornando somente no dia 20 de janeiro, dia do santo padroeiro da cidade. Há indícios de que esta data teria sido incluída no calendário da Folia por influência da charola, uma dança de origem portuguesa com estrutura ritual semelhante a da Folia de Reis e que no Brasil adquiriu uma variante, a “Charola de São Sebastião”.

Tradicionalmente, os integrantes da Folia de Reis são chamados de “foliões” ou de “foliões de Santos Reis” e cada membro da Folia exerce uma função dentro do grupo e durante o processo ritual. Com exceção do palhaço, vestem-se com fardas similares aos fardamentos militares. Entre eles estão o mestre, o contramestre, o bandeireiro, os instrumentistas e os palhaços, considerado os representantes dos soldados de Herodes, perseguidores do Menino Jesus. É o elemento comumente tratado como profano dentro da Folia. Dançam a chula, composta de dança e versos de tom satírico, moral e/ou religioso.

Durante sua apresentação a Folia de Reis segue um percurso ao qual se dá o nome de giro ou jornada. A trajetória ganha este nome pelo fato de que o ponto de partida coincide com o ponto de chegada. Durante essa jornada a Folia vai fazendo suas paradas de um pouso a outro e visitando as casas para anunciar a palavra dos Santos Reis e para pedir donativos ou contribuições.

No decorrer da jornada, a Folia realiza uma série de cantorias ou toadas. A primeira delas é a cantoria de saída que dá início ao giro; este é momento em que a Folia se concentra e as recomendações e rezas são proclamadas pelo mestre. Dentro e fora das casas visitadas pela Folia, também são realizados cantos, entre eles os cantos de chegada e pedido de licença, através dos quais a Folia é recebida pelo dono da casa, realizando assim a saudação e a reza, chamada de profecia, já dentro da casa; por último, a cantoria de despedida, em que a Folia se despede da casa e de seu dono.

Essa sequência se repete em todas as casas visitadas. No momento em que a Folia encerra sua jornada, há o canto de chegada, na maioria das vezes realizado na casa do festeiro, do dono ou mesmo do mestre, diante do presépio ou da própria bandeira da Folia.

O palhaço da Folia

Além das cantorias, realizadas em cada casa visitada, existe a chula do palhaço, que ocorre sempre após a cantoria de despedida, fora da casa, normalmente no quintal ou na rua. Ao som dos instrumentos, em sua maioria, neste momento, de percussão, acompanhados da sanfona (acordeom), executados em ritmo acelerado, ou seja, “música-de-pancadaria”, dançam os palhaços mascarados com extrema velocidade, executando passos e acrobacias caracterizados por um elevado grau de dificuldade em sua execução.

Além da dança, o palhaço declama versos, tentando estabelecer um diálogo jocoso com o morador, na maioria das vezes como uma forma de persuadi-lo, para que este lhe atenda um pedido (geralmente dinheiro, comida ou bebida). No que tange às funções e restrições do palhaço, ao longo da jornada, este está impedido de passar à frente da bandeira, que geralmente fica oculta sob um véu ou pelas fitas, permanecendo sempre atrás e escoltando-a, semelhante ao movimento realizado pelos mestres-salas das escolas de samba.

Como um representante dos soldados do rei Herodes e sendo a bandeira o símbolo máximo da Folia, carrega consigo uma simbologia do sagrado, que não condiz com o papel por ele representado. Outro aspecto que poderia explicar este fato é pensar na bandeira como um símbolo de proteção, como a materialização dos Santos Reis, funcionando como um escudo para a Folia e, ao mesmo tempo, como o estandarte que a identifica. Passar à sua frente significaria não só um desrespeito àquilo que ela representa, mas também uma exposição, na medida em que se extrapola sua área de proteção, ou seja, sair do raio de sua atuação significaria estar desprotegido.

É interessante observar, em relação ao posicionamento do palhaço e sua circulação que, ao mesmo tempo em que o palhaço não pode passar à frente da bandeira ou aproximar-se muito dela, guardados alguns momentos específicos do ritual, é recomendado a ele também que não se afaste muito da bandeira enquanto a Folia realiza seu giro, principalmente à noite.

O palhaço, pela ambiguidade que guarda, por representar o guardião e ao mesmo tempo o soldado de Herodes, figura muitas vezes associada ao diabo, acaba por carregar consigo um aspecto de impureza. Por isso o impedimento em relação ao ato de entrar na casa ou na igreja. Ao longo dos anos de pesquisa, pude ouvir de diversos foliões. Entre eles, principalmente o mestre Luizinho, que já exerceu o ofício de palhaço, que existem situações em que ao final do canto de despedida da Folia, quando esta encerra sua visita, o palhaço é chamado pelo dono da casa e conduzido cômodo por cômodo para realizar uma espécie de limpeza, retirando desses ambientes os elementos, negativos e impuros que possam existir ali, absorvendo em si essas impurezas.

Palhaço e foliões unem-se no corpo ritual da Folia de Reis de forma uníssona, sendo cada parte necessária uma à outra, como um organismo vivo, cujo corpo e estrutura ritual revela-se rico e complexo, estando sujeito a nuances e singularidades conforme a localidade. Podendo variar a cada região, estado, cidade ou até mesmo bairro ou comunidade, o que confere a cada uma delas uma forma única, somada às mudanças que o próprio tempo tem dado cabo, numa tradição que, por ser fruto e agente das dinâmicas sociais, apresenta-se em constante transformação.

No dia 6, eles, os magos, chegaram onde queriam, fizeram o que tinha quer ser feito pra ver um tal menino chamado “Jesus”. Eles, que não sabemos bem se eram três, que não sabemos bem se eram Reis, mas isso não importa.

Abre a janela que eles ainda estão aí, a andar pelas ruas narrando seu feito. Abre a porta que eles vieram anunciar que a fé leva você onde você quiser. Vem pra rua ver passar diante dos seus olhos a mensagem na forma mais linda de que você só precisa acreditar. A Folia de Reis passou na minha porta e eu não me contive e não me satisfiz em ver. Eu fui atrás. Fui ver de perto e aprender com eles um dos maiores ensinamentos que pude ter na vida: FÉ.

A Jornada, a Folia não passou por mim, ela entrou sem bater na minha porta e me levou pro giro! Viva Santos Reis!

Aressa Rios/ http://aressarios.com.br/arte-educacao-e-politica/a-folia-de-reis-no-vale-do-paraiba/

Esse texto foi produzido para o site do Fórum para as Culturas Populares e tradicionais onde encontra-se publicado:

https://fcptsite.wixsite.com/fcpt/single-post/2020/01/20/A-Folia-de-Reis-no-Rio-de-Janeiro?fbclid=IwAR0_LNhAh69Dw5LkN8COTwIrNoXmPgwhtG5FVLMoHiDWacqIl485cssxYCQ

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Cultura

O “carnaval de 50 dias” anunciado por Crivella é a maior derrota política que os neopentecostais já amargaram

Muitas bobagens graúdas já foram ditas sobre a maior festa popular do planeta, o carnaval brasileiro.

Os mal-humorados de múltiplas colorações partidárias acham um absurdo em um país com uma desigualdade tão grande o povo ir para as ruas para cantar, dançar, mas sobretudo batucar, sem entender que a festa dos tambores não é sinal de alienação, mas sim de resistência.

Na verdade, o carnaval é o maior ato político promovido pelo povo todos os anos, porque a festa, que acentua as desilusões, pensa e sonha o país mais do que em qualquer outro momento e cura as feridas mais do que qualquer outro remédio.

E não pense que isso significa acomodação, mas sim um direito de um indivíduo dotado de um estado de alma que lhe permite ser alegre, mesmo diante de um desastre social, mesmo não tendo os direitos consagrados no seu dia a dia.

O carnaval, que amplia as dimensões do país para a totalidade da população não é um mistério a ser decifrado, é o povo dobrando as instituições, principalmente as religiosas e as do Estado. As do Estado são aquelas que sonharam com a Veneza tropical, com templos culturais luxuosos para o encontro social da elite como um burgo que separa o Brasil oficial caricato e burlesco do Brasil rico e culturalmente criativo, protagonizado pelo povo, como disse Machado de Assis.

Nesse arranjo institucional vem as religiões oficiais que sempre quiseram suprimir os tambores como forma de calar as manifestações de origem africana num país eurocêntrico, dotado de uma submissão cultural típica dos cabeças colonizadas.

O povo não. O povo seguiu os repiques dos batuques dos negros em manifestações que abarcam todos, hipnotizam todos e magnetizam todos. Os mesmos tambores dos orixás das religiões de matrizes africanas não estão escritos nas partituras, mas na alma de quem toca, impossível de serem decodificados, como disse Pixinguinha a Mário de Andrade, que foi seu informante na pesquisa que desembocou no livro de Mário, “Música de Feitiçaria no Brasil”.

Pois bem, começou hoje na cidade do Rio de Janeiro, a mais carnavalesca capital do mundo, os 50 dias de carnaval, com mais de 300 mil pessoas nas ruas, que. podem apostar, o sucesso será tanto que, no próximo ano, a maioria das cidades brasileiras copiará o feito, seja por questão cultural, seja econômica.

Sim, porque nada produz uma economia cultural maior do que a cultura do povo e nada representa mais a nossa cultura do que o carnaval.

Assim, todo aquele temor que se tinha de um prefeito evangélico que, por questões religiosas, tentou subtrair a festa do povo, cai por terra. Crivella não resistiu aos tambores dos orixás, melhor dizendo, a igreja Universal do Reino de Deus tem força ínfima diante dessa força tradicional que o brasileiro carrega na alma como seu maior orgulho e identidade, porque o Brasil é, antes de qualquer coisa, um país criado em torno de um grande tambor e de um enorme terreiro.

E por mais que a massificação cultural da indústria ou do mercado religioso queira se sobrepor, não tem força nem para o café, que fará para a feijoada do samba.

Os Pontos de Cultura, criados no governo Lula, sacudiram a identidade nacional e os milhares de blocos de rua entraram em erupção.

Crivella teve que se curvar à maior força do povo brasileiro, a cultura popular, o carnaval, aquilo que é genuinamente nacional.

O carnaval de 50 dias anunciado por Crivella, o prefeito pastor, foi a maior derrota política que os neopentecostais brasileiros já amargaram.

E para quem não entendeu:

Quem comanda a maior força política é a nossa cultura, regida pelos tambores dos Orixás!

 

*Carlos Henrique Machado Freitas

 

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Cultura

Os tambores do vale do Paraíba

Por Francisco Luiz Noel

Que a batida do samba e a dolência do choro têm raízes africanas, não há ouvido que conteste. Porém, de tanto escutar o bordão de que a arte dos sambistas e chorões nasceu em berço urbano, muitos brasileiros não se dão conta de que o caminho desses dois gêneros nacionalíssimos cruzou os cafezais do vale do Paraíba no século 19. Antes de soar redondo nos tambores, pandeiros, violões, flautas, cavaquinhos e bandolins, a música que gerou sambistas como Donga e Clementina de Jesus e chorões como Pixinguinha e Jacó do Bandolim foi nutrida pelos cantos e batuques dos escravos na dura lida das fazendas dos barões do café. O rio Paraíba do Sul corria num grande vale dos tambores, percutidos em meio a formas musicais e instrumentos europeus.

Mais do que com palavras, é com notas musicais que o compositor, bandolinista e chorão fluminense Carlos Henrique Machado Freitas semeia país afora essa visão sobre um dos mais instigantes cruzamentos culturais da música brasileira. Cinco anos após o lançamento de seu CD duplo Vale dos Tambores, o músico sempre bate nessa tecla nas apresentações, palestras e debates de que participa, no Rio de Janeiro e em outros estados. Seu trabalho, cultuado no mundo do choro e lançado em quinta edição, patrocinada pela Eletrobrás, é exemplo vivo desse sincretismo etnomusical, valendo como um contundente manifesto em defesa da filiação do choro e do samba às matrizes da cultura rural dos tempos da cafeicultura escravocrata.

“O vale do Paraíba no século 19 era a representação do Brasil”, afirma Carlos Henrique, que compôs as 35 músicas do CD após uma imersão de dois anos na tradição dos grupos populares de cidades e povoados vale-paraibanos do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Em suas pesquisas, o músico mergulhou no rico universo de manifestações como folias de reis, bailes de calango, o jongo do Quilombo São José, no município fluminense de Valença, e as congadas de Aparecida, no trecho do vale situado em São Paulo. Sobre esse caldeirão cultural, testemunhou o chorão, pairam as figuras negras de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, ícones da religiosidade sincrética que é marca distintiva da sociedade brasileira.

A vitalidade sonora da herança africana no vale chama a atenção de pesquisadores há mais de meio século. Um deles foi o brasilianista Stanley J. Stein, autor de Vassouras – Um Município Brasileiro do Café, 1850-1900, clássico sobre a economia cafeeira publicado em 1957. Num gravador de arame magnetizado, ele registrou em 1949 mais de 50 jongos cantados por descendentes de escravos da região. Os registros, que incluíam sambas, possivelmente gravados no Rio de Janeiro, tornaram-se conhecidos em 2007 no livro-CD Memória do Jongo – As Gravações Históricas de Stanley J. Stein, organizado pelo antropólogo Gustavo Pacheco e pela historiadora Silvia Hunold Lara, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com patrocínio da Petrobras.

Livres e migrantes

No turbilhão migratório iniciado após a Abolição, em 1888, e estendido até os anos 1930, não foram poucos os ex-escravos e descendentes que transportaram ao Rio de Janeiro e São Paulo a tradição afro-brasileira do vale. Sonhando melhorar de vida, mas relegados a barracos de favelas e a empregos humildes, muitos vale-paraibanos anônimos ajudaram a dar forma ao carnaval carioca e paulistano, agregando ritmos e gingados de origem africana a uma festa antes dominada por traços europeus. A presença desses migrantes, observa o sambista carioca Nei Lopes, pesquisador da cultura negra, é atestada por estudiosos de escolas de samba do Rio, como Marília Barbosa, autora de livros sobre a Mangueira e a Portela, e Rachel Valença, sobre o Império Serrano.

“Em vários livros sobre as primeiras escolas de samba cariocas, a listagem biográfica dos fundadores tem a predominância de pessoas oriundas do vale do Paraíba. O samba, evidentemente, não veio com elas, mas as manifestações que trouxeram e aqui se caldearam com as de outras procedências foram decisivas”, Nei Lopes avalia. Exemplos dessas contribuições, ele cita, foram o jongo e o calango, exportados do vale e praticados até hoje em comunidades de ascendência negra. Conhecido como caxambu e tambu, o jongo une a dança ao canto puxado pelo jongueiro e respondido na roda, ritmado por um par de tambores. No calango, os versos são improvisados em ritmo rápido e sincopado, ao som da sanfona e do pandeiro.

Caso típico de migração do vale do Paraíba rumo ao Rio de Janeiro nos tempos da formação do samba é o da filha de escravos Maria Joana Monteiro, que ficaria conhecida como Vovó Maria Joana Rezadeira, mãe de santo que tinha entre seus filhos de fé a cantora Clara Nunes. Nascida e criada numa fazenda de café em Valença, Maria Joana mudou-se nos anos 1920 com a família, o jongo e outras tradições para o morro da Serrinha, no bairro de Madureira, onde participaria da fundação da Escola de Samba Império Serrano, em 1947. Seu filho, o percussionista Darcy Monteiro, criaria na década de 1960 o grupo Jongo da Serrinha, que articula a tradição rural do gênero ao formato de show, difundindo o jongo no país e no exterior.

O samba paulistano viveu processo semelhante, observa a professora de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) Martha Abreu, pesquisadora da cultura negra e coautora de um dos textos de Memória do Jongo. “Nos morros do Rio onde surgiram escolas de samba havia jongo, calango e folias de reis, que já existiam na cidade, mas que eram a cara do vale do Paraíba no século 19. Isso também ocorreu em São Paulo: muitas pessoas das primeiras escolas, como as que moravam na Barra Funda, tinham saído do vale.” Em 1914, no bairro, as rodas de samba de negros citadinos e migrantes geraram o Grupo Carnavalesco Barra Funda, primeiro cordão paulistano, liderado pelo filho de escravos Dionísio Barbosa e origem da Escola de Samba Camisa Verde e Branco.

Memórias dos cafezais

O vale do Paraíba despontou no mapa do Brasil no século 17. Pela correnteza do rio, descendo desde as terras paulistas, os bandeirantes iniciavam a jornada rumo às matas de Minas Gerais em busca de ouro e pedras preciosas, numa aventura que abriu novas fronteiras para o Brasil Colônia à custa da dizimação de diversos grupos indígenas que viviam na região. De caminho para desbravadores e mercadorias, o vale passou à condição de principal polo da economia brasileira na segunda metade do século 19, quando o boom da cafeicultura escravocrata e a consequente derrubada da mata atlântica para a expansão sem freios das lavouras abriram um novo ciclo na economia brasileira, depois dos reinados do açúcar e da mineração.

O café, originário da África, havia chegado ao Brasil por volta de 1730, procedente da Guiana Francesa. Das primeiras lavouras cultivadas no Pará, a planta rubiácea desceu ao sudeste e foi aclimatada pelo braço escravo a locais montanhosos da cidade do Rio de Janeiro, como a área que mais tarde teria a mata recomposta e formaria a floresta da Tijuca. No fim do século 18, a cafeicultura expandiu-se em direção ao interior e, avançando serra acima, alcançou o vale do Paraíba pelo município fluminense de Resende. Na direção oeste, os cafezais seguiram rumo a terras paulistas e, a leste, desceram pelo vale e fincaram raízes na Zona da Mata do território de Minas.

O acesso fácil à mão de obra escrava, fornecida por um vigoroso tráfico negreiro, pilotado por grandes negociantes e comissários do café, foi vital para fazer do produto o grande negócio brasileiro do Segundo Reinado, estimulado pelo consumo crescente em países da Europa e nos Estados Unidos. Na segunda metade dos anos 1840, a produção dos cafezais espalhados no trecho fluminense do vale do Paraíba beirava 50 mil toneladas anuais, calcada na grande fazenda monocultora, que os economistas do século 20 chamariam de plantation. Na década de 1850, em plena expansão por todo o vale, as propriedades cafeeiras chegaram a produzir 140 mil toneladas por ano – mais de 80% das exportações do Brasil, maior fornecedor de café do planeta.

No vale, cavado entre a litorânea serra do Mar e a interiorana Mantiqueira, o café espalhou cidades e lugarejos marcados por flagrante desigualdade social, mas ricos em manifestações culturais, surgidas na encruzilhada do legado dos negros bantos, procedentes da África central, e da influência europeia. Passados 150 anos do auge da cafeicultura, suas marcas continuam presentes na região, incluída a arquitetura de época. O Paraíba do Sul, com 1.150 quilômetros entre o nascedouro, em Paraibuna (SP), e a foz, em São João da Barra (RJ), é o desaguadouro de uma bacia hidrográfica que se espraia por 55,5 mil quilômetros quadrados e abriga 5,5 milhões de brasileiros, em 180 municípios – 39 em São Paulo, 53 no Rio de Janeiro e 88 em Minas.

Bandas de escravos

Uma das pontes entre a musicalidade de linhagem africana e o choro foram as bandas de escravos formadas em várias fazendas do vale na segunda metade do século 19, explica o músico Carlos Henrique. Como sinal de poder, os barões do café ostentavam a propriedade de grupos musicais em que negros empunhavam instrumentos de sopro importados e eram regidos por músicos europeus. Exemplo, nos anos 1850, foi a banda de escravos que aparece na fotografia de capa dos CDs e do encarte de Vale dos Tambores. Pertencente ao cafeicultor Antônio Luís de Almeida, de Bananal, município paulista do vale, o grupo era conhecido como Banda do Tio Antoniquinho e tinha à frente um maestro alemão, Wiltem Sholtz.

O encontro de vertentes musicais tão diferentes desaguou numa das correntes mais ricas da cultura brasileira. “Os negros se apropriaram das formas musicais da Europa, mas incluíram um toque da ancestralidade africana e também ameríndia”, observa Carlos Henrique. O vale do Paraíba, onde africanos recém-desembarcados se juntavam a negros e brancos tangidos à região pela decadência do ouro em Minas, foi espaço privilegiado na formação da musicalidade nacional, proporcionando a operação de processos de sincretismo cultural ocorridos também em regiões como as zonas açucareiras, no nordeste. “O choro e o samba foram construídos nos nossos ciclos econômicos”, resume o músico, nascido no município de Volta Redonda (RJ) em 1952.

Em Vale dos Tambores, Carlos Henrique passeia pela cultura regional sem abrir mão da criatividade na composição, secundando seu bandolim com o instrumental típico do choro, agregando sopros e valorizando a percussão. O passado ressoa em músicas como Tambus para Manoel Congo, alusiva ao líder de uma gigantesca fuga de escravos no vale, em 1838, e Lundu de Clementina, ecoando também em peças como Dança dos Puris, cujo título remete aos indígenas dizimados pela expansão do café. Cortando um Dobrado lembra as bandas que estão na origem do choro. Na pungente Zero Hora, o bandolinista honra em ritmo de valsa os peões do turno da meia-noite na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, adicionando sua vivência urbana ao rico painel que criou sobre a música do vale do Paraíba.

O choro de raiz de Vale dos Tambores rende tributo às origens vale-paraibanas do autor. Filho de arigó, como eram chamados os fluminenses, mineiros e migrantes de outros estados que ergueram à beira do Paraíba do Sul a CSN e a Cidade do Aço, nos anos 1940, o músico viveu a efervescência cultural das primeiras décadas do empreendimento, símbolo getulista de um Brasil moderno. Num mundo em que os filhos dos arigós tinham boas escolas e formação artística, garotos como Carlos Henrique soltavam a voz no canto orfeônico, sopravam cornetas nas fanfarras e aprendiam a tocar instrumentos – tudo em nome do “novo homem”, como pregava a propaganda getulista.

Ao aprendizado musical, o compositor juntou a experiência como mestre de bateria de escolas de samba de Volta Redonda e integrante de grupos de choro desde os anos 1970, colecionando prêmios e elogios de chorões da antiga e do presente. Autor de uma composição incorporada ao repertório do gênero – Meu Pandeiro no Choro –, Carlos Henrique lançou em 2002 seu primeiro disco, Comigo Não, Violão, com 14 composições. Com Vale dos Tambores, ganhou em 2005 o 4º Prêmio Rival Petrobras de Música, na categoria Atitude, e viu suas músicas lançadas no Japão, além de passar a se apresentar em programas culturais na tevê e em templos da música instrumental, como o Clube do Choro de Brasília e a loja Modern Sound, no Rio de Janeiro.

Carlos Henrique, que prepara um novo CD inspirado nas observações do escritor e pesquisador Mário de Andrade sobre o choro no livro Música de Feitiçaria no Brasil, dos anos 1930, segue o rastro de muitos outros grandes músicos do vale do Paraíba que ganharam o mundo. Um dos primeiros a se projetar foi o pistonista e compositor Bonfiglio de Oliveira, mestiço nascido em 1891 no município paulista de Guaratinguetá, por onde ainda ecoavam melodias e ritmos das bandas que haviam misturado o som das senzalas com o instrumental e as formas europeias da casa-grande. Virtuose, Bonfiglio brilhou em orquestras cariocas, compôs choros e musicou sambas com letristas famosos, como Orestes Barbosa, Lamartine Babo e Herivelto Martins.

O vale do Paraíba também exportou cobras em outros instrumentos, como o violão, abrasileirado no século 20 e alçado a presença obrigatória na música popular do país. Nascido também em Guará, o instrumentista Dilermando Reis desembarcou no Rio de Janeiro aos 18 anos, na década de 1930, para fazer escola como precursor da linguagem que caracterizaria o chamado violão brasileiro. Outra virtuose do pinho foi Rosinha de Valença, do município homônimo na parte fluminense do vale. Gênio precoce, apresentada às cordas por um tio conhecido como Fio da Mulata, ela passou a tocar em bailes da região aos 12 anos e migrou para o Rio de Janeiro aos 18, impressionando com sua técnica os músicos cariocas.

Samba e raízes rurais

No balaio de influências da tradição negra do vale sobre o samba carioca, um caso emblemático é o da cantora Clementina de Jesus. Neta de escravos do café, nascida em Valença junto com o século 20, ela viveu a infância entre pontos de jongo, ladainhas e cantos de trabalho entoados pela mãe, parteira e rezadeira, e toques de capoeira e da viola ponteada pelo pai, pedreiro e carpinteiro. Desembarcada no Rio de Janeiro nos anos 1910, morou no bairro de Oswaldo Cruz, berço da Portela, e no morro da Mangueira, trabalhando quase toda a vida como empregada doméstica. Em 1963, aos 63 anos, teve seu talento descoberto pelo compositor e produtor cultural Hermínio Bello de Carvalho.

Aos ouvidos cariocas da década de 1960, quando a classe média se dividia entre a bossa nova e a nascente jovem guarda, o canto de Clementina era o elo perdido entre a música das senzalas e o samba, que vivia dias de revalorização. Em 1965, ela impressionou a crítica carioca ao estrelar com Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nescarzinho do Salgueiro e Aracy Cortes o histórico show Rosa de Ouro. O espetáculo repetia o nome do cordão cantado em Ó Abre Alas, marcha composta em 1899 por Chiquinha Gonzaga, pioneira na fusão de ritmos negros com formas europeias. Clementina lançou em 1966 o primeiro de seus LPs, em que o partido-alto e outras variações do samba desfilavam ao lado do jongo e outros gêneros ancestrais do vale.

Mensurar a exata influência dos vale paraibanos é desafio que não passa pela cabeça dos estudiosos, em face da complexidade do cruzamento de culturas que resultou no samba. No Rio de Janeiro, além dos libertos chegados do vale, os ex-escravos originados da Bahia e seus descendentes deram grande contribuição ao gênero. Muitos deles se reuniam, nas primeiras décadas do século 20, em casas e rodas como a da célebre mãe de santo e quituteira Tia Ciata, na antiga Praça 11, berço dos desfiles de escolas de samba. Em 1917, da casa da baiana Ciata, frequentada por bambas como Pixinguinha e os sambistas Sinhô e João da Baiana, saiu o primeiro samba gravado, Pelo Telefone, registrado por Donga e Mauro de Almeida.

Marcas da herança vale-paraibana no samba foram deixadas por manifestações como o calango. “Em minhas pesquisas sobre partido-alto, observei que no samba tradicional há uma maneira de versar e de improvisar mais sinuosa, mais sincopada, mais repinicada. Acho que isso veio do calango ou desafio calangueado, da região do vale”, afirma Nei Lopes, comparando essa forma ao samba de roda da Bahia, mais “liso”, com menos notas musicais, ritmado com palmas. Entre os partideiros que lembram o calango ele cita alguns famosos, como Padeirinho da Mangueira e Geraldo Babão, do Salgueiro, falecidos, e Tantinho da Mangueira.

 

 

*Da Revista Sesc

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Faltam elementos no relato de hacker, afirmam especialistas em segurança digital

Método descrito por Walter Delgatti Neto à PF demandaria “conhecimento sofisticado” e mais tempo para chegar à cúpula da República.

Walter Delgatti Neto, de 30 anos, mais conhecido como Vermelho —ou, agora, como o hacker de Araraquara—, descreveu à Polícia Federal como, de maneira autodidata, conseguiu chegar, supostamente, ao aparelho celular do procurador da República Deltan Dallagnol, depois de hackear também nomes como o da ex-presidenta Dilma Rousseff ou do presidente do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes. No depoimento que deu às autoridades, obtido pela GloboNews, Delgatti Neto conta que acessou a caixa postal das vítimas para conectar-se às suas contas no Telegram. No entanto, especialistas em segurança digital ouvidos pelo EL PAÍS apontam incoerências entre o relato e o modus operandi necessário para uma invasão dessa importância e com tamanha abrangência. De acordo com a PF, outras 1.000 pessoas teriam sido alvo da “organização criminosa” composta por Delgatti Neto e outras três pessoas detidas na terça-feira—outros seis indivíduos são investigados—.

Daniel Lofrano Nascimento, que atua há mais de 15 anos no setor de cibersegurança (já foi hacker e hoje é dono da consultoria de segurança digital DNPontoCom) é taxativo: “A narrativa descrita por ele é muito improvável”. Além de considerar o método de invasão por caixa postal “ultrapassado” —que não seria usado por um hacker com capacidade de chegar aos principais nomes do cenário político nacional—, Nascimento explica que demandaria mais do que poucos meses para executá-lo. “Eles ligaram para mais de 1.000 caixas postais, uma por uma, em poucos meses? É muito trabalho. Não dá para hackear 1.000 telefones, mesmo que estivermos falando de quatro hackers de ponta. É um número altíssimo. E ninguém considera eles hackers ou crackers . Segundo a própria PF, são estelionatários”, argumenta o especialista.

A técnica que teria sido usada por eles e deu nome à operação da PF, o Spoofing —”falsificação tecnológica que procura enganar uma rede ou uma pessoa fazendo-a acreditar que a fonte de uma informação é confiável quando, na realidade, não é”— tem versões mais comuns, principalmente por computador. “O golpe mais comum é quando você acha, por exemplo, que está acessando determinado site de internet banking, mas não está nele e, sim, em uma página que foi construída. Para o usuário, este aparenta ser o site do banco, mas, na verdade, é um site falso para roubar dados sigilosos”, explica José Ricardo Bevilacqua, diretor da Control Risks, especialista em segurança digital, no Brasil.

A hipótese de Daniel Nascimento é que um ataque como esse foi feito por meio de invasão a operadoras telefônicas e clonagem de chips, que, segundo ele, funciona como um espelhamento do celular, permitindo clonar automaticamente o e-mail e o número da vítima. “É possível fazer isso através de um chip virgem. Eles invadem a operadora, descobrem o número da vítima no chip e este número fica ativo em dois aparelhos ao mesmo tempo. Daí você tem as informações associadas ao tal número”. Neste caso, os hackers não teriam usado a caixa postal, mas solicitado o código do Telegram via SMS, que teria chegado no chip clonado. Esse é um dos procedimentos de recuperação do Telegram, o que não acontece com plataformas como WhatsApp, Google Drive ou iCloud, que solicitam um PIN para permitir o acesso. “Mas invadir uma operadora exige muito conhecimento técnico. Me causa estranheza, porque mesmo um hacker excelente demoraria mais tempo para fazer isso”, pondera Nascimento.

Kalinka Castelo Branco, professora de Sistemas da Computação do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP não descarta a hipótese de acesso ao Telegram das vítimas por meio da caixa postal, mas ressalta: “Não é um ataque comum nem trivial. Requer conhecimento técnico muito sofisticado”. Além disso, Castelo Branco vê práticas incomuns para um grupo com potencial de hackear a cúpula da República. “O que a maioria dos atacantes faz quando obtém esse código é trocar todas as senhas para bloquear o acesso da vítima. Não foi o caso”.

Castelo Branco também questiona a abrangência do ataque. Segundo a especialista, para atingir mais de 1.000 pessoas, entre elas alguns dos nomes mais importantes dos panoramas político e jurídico nacional, o mais provável seria o que descreve como um “ataque zumbi”: uma invasão de várias máquinas de terceiros, não necessariamente relacionados com os alvos finais do hackeamento, para controlá-las e usá-las para chegar aos dispositivos das vítimas. “Outra opção é que o grupo tivesse acesso físico aos dispositivos dessas autoridades ou houvesse proximidade geográfica que permitisse acesso à mesma rede Wi-Fi que elas usam, por exemplo”, acrescenta.

Os especialistas explicam que o passo a passo para invadir o dispositivo de um cidadão comum ou de uma figura de alta patente política é, em teoria, o mesmo. Ressaltam, no entanto, que surpreende que autoridades que ocupam altos cargos políticos e jurídicos não utilizem meios mais potentes de segurança. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) recomenda aos membros do Executivo o uso de celulares encriptados, que não dispõem de aplicativos de mensagens, mas é sabido que há resistência por parte das autoridades em usar tais dispositivos. Depois dos vazamentos, tanto o ministro da Justiça, Sergio Moro, quanto o presidente Jair Bolsonaro passaram a usar esses celulares.

Para Castelo Branco, outro fator chave para entender o caso é a cultura de uso de aplicativos e grupos de mensagens no Brasil. “Nos casos internacionais de hackeamento, tanto os métodos de segurança como a técnica utilizada pelos invasores era mais sofisticada”, lembra. Ela se refere ao vazamento de e-mails enviados de um servidor particular de Hillary Clinton durante sua gestão como secretária de Estado americana, de 2009 a 2013, e à invasão de informações da chanceler alemã, Angela Merkel, no início deste ano.

Uma das principais dúvidas sobre o caso diz respeito a mensagens supostamente apagadas. Delgatti Neto afirma que interceptou diálogos entre março e maio deste ano. Moro alega que não usava o Telegram desde 2017, e o Telegram diz que a política da plataforma é apagar o conteúdo de um perfil que não tenha sido utilizado em seis meses. José Ricardo Bevilacqua explica: “Quando fazemos perícia, sempre tentamos recuperar informações do dispositivo. Na nuvem, o backup armazena mensagens. Nesse caso, é possível recuperá-las, mas, uma vez mais, isso é trabalho para profissionais”.

 

 

*Do El País

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Sobre João Gilberto e o povo brasileiro

O comentário fundamental de tantos que eu li sobre João Gilberto, num festival de paspalhices conceituais, não veio, não foi colocado na cena. Muito se falou do imponderável, mas nada se falou do essencial, daquilo que traduz a alma de um artista. No caso de João Gilberto, a essência de sua batida, de sua harmonia e de toda a estética que o cercava era pelo simples fato de ser um brasileiro e, como tal, captar do cosmos nativo aquilo que era precisou para consagrar sua obra.

No Brasil, sobretudo depois de 1960, exalta-se demais coisas importantes, mas sem qualquer importância na obra de um artista, como é o caso do jazz. Isso é uma espécie de grilagem cultural. Um artista do peso de João Gilberto seria inadmissível se não fosse essencialmente brasileiro, porque este é o fato indivisível, a obra e o meio. O artista retira o novo do que o povo concebe como novo. Não tem como um artista exilar-se do seu meio, pois, sem ele, um conjunto de qualidades e expressões cria-lhe uma alma de pedra, sem lhe dar o verdadeiro mérito que é carregar consigo a força misteriosa de um observador que traduz em sua arte o sentido criativo do seu povo.

Então, fere-se com redondilhas retóricas o caráter essencial de uma cultura. João Gilberto empregou em sua obra toda a escala melódica que caracteriza a obra brasileira. Na realidade, João Gilberto representa a verdadeira vitória daquilo que dá a tônica da música brasileira, não importando ser bossa nova, samba, choro, frevo e tantas linguagens musicais deste Brasil macunaímico que não se impõe por uma característica, mas por uma livre e aguda emancipação de qualquer caráter definitivo.

Há na essência da obra de João Gilberto os terreiros, as bandas de coreto, as orquestras, o maior e mais completo conjunto de sons de geografia genérica. Não interessa se o João Gilberto era baiano, carioca, capixaba, gaúcho e etc., isso é uma leitura que, ao invés de buscar a razão da riqueza de sua obra, busca nomenclaturas.

Ora, em João há a batida do coco, da chula raiada, do partido alto, do jongo, do congo, maracatu, do tambor de mina, de crioula, enfim, há tudo o que está na essência do Choro, naqueles vários formatos de samba que traduzem a natureza de nossa música com um estupendo caráter libertário.

 

*Por Carlos Henrique Machado Freitas