Por Francisco Luiz Noel
Que a batida do samba e a dolência do choro têm raízes africanas, não há ouvido que conteste. Porém, de tanto escutar o bordão de que a arte dos sambistas e chorões nasceu em berço urbano, muitos brasileiros não se dão conta de que o caminho desses dois gêneros nacionalíssimos cruzou os cafezais do vale do Paraíba no século 19. Antes de soar redondo nos tambores, pandeiros, violões, flautas, cavaquinhos e bandolins, a música que gerou sambistas como Donga e Clementina de Jesus e chorões como Pixinguinha e Jacó do Bandolim foi nutrida pelos cantos e batuques dos escravos na dura lida das fazendas dos barões do café. O rio Paraíba do Sul corria num grande vale dos tambores, percutidos em meio a formas musicais e instrumentos europeus.
Mais do que com palavras, é com notas musicais que o compositor, bandolinista e chorão fluminense Carlos Henrique Machado Freitas semeia país afora essa visão sobre um dos mais instigantes cruzamentos culturais da música brasileira. Cinco anos após o lançamento de seu CD duplo Vale dos Tambores, o músico sempre bate nessa tecla nas apresentações, palestras e debates de que participa, no Rio de Janeiro e em outros estados. Seu trabalho, cultuado no mundo do choro e lançado em quinta edição, patrocinada pela Eletrobrás, é exemplo vivo desse sincretismo etnomusical, valendo como um contundente manifesto em defesa da filiação do choro e do samba às matrizes da cultura rural dos tempos da cafeicultura escravocrata.
“O vale do Paraíba no século 19 era a representação do Brasil”, afirma Carlos Henrique, que compôs as 35 músicas do CD após uma imersão de dois anos na tradição dos grupos populares de cidades e povoados vale-paraibanos do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Em suas pesquisas, o músico mergulhou no rico universo de manifestações como folias de reis, bailes de calango, o jongo do Quilombo São José, no município fluminense de Valença, e as congadas de Aparecida, no trecho do vale situado em São Paulo. Sobre esse caldeirão cultural, testemunhou o chorão, pairam as figuras negras de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário, ícones da religiosidade sincrética que é marca distintiva da sociedade brasileira.
A vitalidade sonora da herança africana no vale chama a atenção de pesquisadores há mais de meio século. Um deles foi o brasilianista Stanley J. Stein, autor de Vassouras – Um Município Brasileiro do Café, 1850-1900, clássico sobre a economia cafeeira publicado em 1957. Num gravador de arame magnetizado, ele registrou em 1949 mais de 50 jongos cantados por descendentes de escravos da região. Os registros, que incluíam sambas, possivelmente gravados no Rio de Janeiro, tornaram-se conhecidos em 2007 no livro-CD Memória do Jongo – As Gravações Históricas de Stanley J. Stein, organizado pelo antropólogo Gustavo Pacheco e pela historiadora Silvia Hunold Lara, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com patrocínio da Petrobras.
Livres e migrantes
No turbilhão migratório iniciado após a Abolição, em 1888, e estendido até os anos 1930, não foram poucos os ex-escravos e descendentes que transportaram ao Rio de Janeiro e São Paulo a tradição afro-brasileira do vale. Sonhando melhorar de vida, mas relegados a barracos de favelas e a empregos humildes, muitos vale-paraibanos anônimos ajudaram a dar forma ao carnaval carioca e paulistano, agregando ritmos e gingados de origem africana a uma festa antes dominada por traços europeus. A presença desses migrantes, observa o sambista carioca Nei Lopes, pesquisador da cultura negra, é atestada por estudiosos de escolas de samba do Rio, como Marília Barbosa, autora de livros sobre a Mangueira e a Portela, e Rachel Valença, sobre o Império Serrano.
“Em vários livros sobre as primeiras escolas de samba cariocas, a listagem biográfica dos fundadores tem a predominância de pessoas oriundas do vale do Paraíba. O samba, evidentemente, não veio com elas, mas as manifestações que trouxeram e aqui se caldearam com as de outras procedências foram decisivas”, Nei Lopes avalia. Exemplos dessas contribuições, ele cita, foram o jongo e o calango, exportados do vale e praticados até hoje em comunidades de ascendência negra. Conhecido como caxambu e tambu, o jongo une a dança ao canto puxado pelo jongueiro e respondido na roda, ritmado por um par de tambores. No calango, os versos são improvisados em ritmo rápido e sincopado, ao som da sanfona e do pandeiro.
Caso típico de migração do vale do Paraíba rumo ao Rio de Janeiro nos tempos da formação do samba é o da filha de escravos Maria Joana Monteiro, que ficaria conhecida como Vovó Maria Joana Rezadeira, mãe de santo que tinha entre seus filhos de fé a cantora Clara Nunes. Nascida e criada numa fazenda de café em Valença, Maria Joana mudou-se nos anos 1920 com a família, o jongo e outras tradições para o morro da Serrinha, no bairro de Madureira, onde participaria da fundação da Escola de Samba Império Serrano, em 1947. Seu filho, o percussionista Darcy Monteiro, criaria na década de 1960 o grupo Jongo da Serrinha, que articula a tradição rural do gênero ao formato de show, difundindo o jongo no país e no exterior.
O samba paulistano viveu processo semelhante, observa a professora de história da Universidade Federal Fluminense (UFF) Martha Abreu, pesquisadora da cultura negra e coautora de um dos textos de Memória do Jongo. “Nos morros do Rio onde surgiram escolas de samba havia jongo, calango e folias de reis, que já existiam na cidade, mas que eram a cara do vale do Paraíba no século 19. Isso também ocorreu em São Paulo: muitas pessoas das primeiras escolas, como as que moravam na Barra Funda, tinham saído do vale.” Em 1914, no bairro, as rodas de samba de negros citadinos e migrantes geraram o Grupo Carnavalesco Barra Funda, primeiro cordão paulistano, liderado pelo filho de escravos Dionísio Barbosa e origem da Escola de Samba Camisa Verde e Branco.
Memórias dos cafezais
O vale do Paraíba despontou no mapa do Brasil no século 17. Pela correnteza do rio, descendo desde as terras paulistas, os bandeirantes iniciavam a jornada rumo às matas de Minas Gerais em busca de ouro e pedras preciosas, numa aventura que abriu novas fronteiras para o Brasil Colônia à custa da dizimação de diversos grupos indígenas que viviam na região. De caminho para desbravadores e mercadorias, o vale passou à condição de principal polo da economia brasileira na segunda metade do século 19, quando o boom da cafeicultura escravocrata e a consequente derrubada da mata atlântica para a expansão sem freios das lavouras abriram um novo ciclo na economia brasileira, depois dos reinados do açúcar e da mineração.
O café, originário da África, havia chegado ao Brasil por volta de 1730, procedente da Guiana Francesa. Das primeiras lavouras cultivadas no Pará, a planta rubiácea desceu ao sudeste e foi aclimatada pelo braço escravo a locais montanhosos da cidade do Rio de Janeiro, como a área que mais tarde teria a mata recomposta e formaria a floresta da Tijuca. No fim do século 18, a cafeicultura expandiu-se em direção ao interior e, avançando serra acima, alcançou o vale do Paraíba pelo município fluminense de Resende. Na direção oeste, os cafezais seguiram rumo a terras paulistas e, a leste, desceram pelo vale e fincaram raízes na Zona da Mata do território de Minas.
O acesso fácil à mão de obra escrava, fornecida por um vigoroso tráfico negreiro, pilotado por grandes negociantes e comissários do café, foi vital para fazer do produto o grande negócio brasileiro do Segundo Reinado, estimulado pelo consumo crescente em países da Europa e nos Estados Unidos. Na segunda metade dos anos 1840, a produção dos cafezais espalhados no trecho fluminense do vale do Paraíba beirava 50 mil toneladas anuais, calcada na grande fazenda monocultora, que os economistas do século 20 chamariam de plantation. Na década de 1850, em plena expansão por todo o vale, as propriedades cafeeiras chegaram a produzir 140 mil toneladas por ano – mais de 80% das exportações do Brasil, maior fornecedor de café do planeta.
No vale, cavado entre a litorânea serra do Mar e a interiorana Mantiqueira, o café espalhou cidades e lugarejos marcados por flagrante desigualdade social, mas ricos em manifestações culturais, surgidas na encruzilhada do legado dos negros bantos, procedentes da África central, e da influência europeia. Passados 150 anos do auge da cafeicultura, suas marcas continuam presentes na região, incluída a arquitetura de época. O Paraíba do Sul, com 1.150 quilômetros entre o nascedouro, em Paraibuna (SP), e a foz, em São João da Barra (RJ), é o desaguadouro de uma bacia hidrográfica que se espraia por 55,5 mil quilômetros quadrados e abriga 5,5 milhões de brasileiros, em 180 municípios – 39 em São Paulo, 53 no Rio de Janeiro e 88 em Minas.
Bandas de escravos
Uma das pontes entre a musicalidade de linhagem africana e o choro foram as bandas de escravos formadas em várias fazendas do vale na segunda metade do século 19, explica o músico Carlos Henrique. Como sinal de poder, os barões do café ostentavam a propriedade de grupos musicais em que negros empunhavam instrumentos de sopro importados e eram regidos por músicos europeus. Exemplo, nos anos 1850, foi a banda de escravos que aparece na fotografia de capa dos CDs e do encarte de Vale dos Tambores. Pertencente ao cafeicultor Antônio Luís de Almeida, de Bananal, município paulista do vale, o grupo era conhecido como Banda do Tio Antoniquinho e tinha à frente um maestro alemão, Wiltem Sholtz.
O encontro de vertentes musicais tão diferentes desaguou numa das correntes mais ricas da cultura brasileira. “Os negros se apropriaram das formas musicais da Europa, mas incluíram um toque da ancestralidade africana e também ameríndia”, observa Carlos Henrique. O vale do Paraíba, onde africanos recém-desembarcados se juntavam a negros e brancos tangidos à região pela decadência do ouro em Minas, foi espaço privilegiado na formação da musicalidade nacional, proporcionando a operação de processos de sincretismo cultural ocorridos também em regiões como as zonas açucareiras, no nordeste. “O choro e o samba foram construídos nos nossos ciclos econômicos”, resume o músico, nascido no município de Volta Redonda (RJ) em 1952.
Em Vale dos Tambores, Carlos Henrique passeia pela cultura regional sem abrir mão da criatividade na composição, secundando seu bandolim com o instrumental típico do choro, agregando sopros e valorizando a percussão. O passado ressoa em músicas como Tambus para Manoel Congo, alusiva ao líder de uma gigantesca fuga de escravos no vale, em 1838, e Lundu de Clementina, ecoando também em peças como Dança dos Puris, cujo título remete aos indígenas dizimados pela expansão do café. Cortando um Dobrado lembra as bandas que estão na origem do choro. Na pungente Zero Hora, o bandolinista honra em ritmo de valsa os peões do turno da meia-noite na Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda, adicionando sua vivência urbana ao rico painel que criou sobre a música do vale do Paraíba.
O choro de raiz de Vale dos Tambores rende tributo às origens vale-paraibanas do autor. Filho de arigó, como eram chamados os fluminenses, mineiros e migrantes de outros estados que ergueram à beira do Paraíba do Sul a CSN e a Cidade do Aço, nos anos 1940, o músico viveu a efervescência cultural das primeiras décadas do empreendimento, símbolo getulista de um Brasil moderno. Num mundo em que os filhos dos arigós tinham boas escolas e formação artística, garotos como Carlos Henrique soltavam a voz no canto orfeônico, sopravam cornetas nas fanfarras e aprendiam a tocar instrumentos – tudo em nome do “novo homem”, como pregava a propaganda getulista.
Ao aprendizado musical, o compositor juntou a experiência como mestre de bateria de escolas de samba de Volta Redonda e integrante de grupos de choro desde os anos 1970, colecionando prêmios e elogios de chorões da antiga e do presente. Autor de uma composição incorporada ao repertório do gênero – Meu Pandeiro no Choro –, Carlos Henrique lançou em 2002 seu primeiro disco, Comigo Não, Violão, com 14 composições. Com Vale dos Tambores, ganhou em 2005 o 4º Prêmio Rival Petrobras de Música, na categoria Atitude, e viu suas músicas lançadas no Japão, além de passar a se apresentar em programas culturais na tevê e em templos da música instrumental, como o Clube do Choro de Brasília e a loja Modern Sound, no Rio de Janeiro.
Carlos Henrique, que prepara um novo CD inspirado nas observações do escritor e pesquisador Mário de Andrade sobre o choro no livro Música de Feitiçaria no Brasil, dos anos 1930, segue o rastro de muitos outros grandes músicos do vale do Paraíba que ganharam o mundo. Um dos primeiros a se projetar foi o pistonista e compositor Bonfiglio de Oliveira, mestiço nascido em 1891 no município paulista de Guaratinguetá, por onde ainda ecoavam melodias e ritmos das bandas que haviam misturado o som das senzalas com o instrumental e as formas europeias da casa-grande. Virtuose, Bonfiglio brilhou em orquestras cariocas, compôs choros e musicou sambas com letristas famosos, como Orestes Barbosa, Lamartine Babo e Herivelto Martins.
O vale do Paraíba também exportou cobras em outros instrumentos, como o violão, abrasileirado no século 20 e alçado a presença obrigatória na música popular do país. Nascido também em Guará, o instrumentista Dilermando Reis desembarcou no Rio de Janeiro aos 18 anos, na década de 1930, para fazer escola como precursor da linguagem que caracterizaria o chamado violão brasileiro. Outra virtuose do pinho foi Rosinha de Valença, do município homônimo na parte fluminense do vale. Gênio precoce, apresentada às cordas por um tio conhecido como Fio da Mulata, ela passou a tocar em bailes da região aos 12 anos e migrou para o Rio de Janeiro aos 18, impressionando com sua técnica os músicos cariocas.
Samba e raízes rurais
No balaio de influências da tradição negra do vale sobre o samba carioca, um caso emblemático é o da cantora Clementina de Jesus. Neta de escravos do café, nascida em Valença junto com o século 20, ela viveu a infância entre pontos de jongo, ladainhas e cantos de trabalho entoados pela mãe, parteira e rezadeira, e toques de capoeira e da viola ponteada pelo pai, pedreiro e carpinteiro. Desembarcada no Rio de Janeiro nos anos 1910, morou no bairro de Oswaldo Cruz, berço da Portela, e no morro da Mangueira, trabalhando quase toda a vida como empregada doméstica. Em 1963, aos 63 anos, teve seu talento descoberto pelo compositor e produtor cultural Hermínio Bello de Carvalho.
Aos ouvidos cariocas da década de 1960, quando a classe média se dividia entre a bossa nova e a nascente jovem guarda, o canto de Clementina era o elo perdido entre a música das senzalas e o samba, que vivia dias de revalorização. Em 1965, ela impressionou a crítica carioca ao estrelar com Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Nescarzinho do Salgueiro e Aracy Cortes o histórico show Rosa de Ouro. O espetáculo repetia o nome do cordão cantado em Ó Abre Alas, marcha composta em 1899 por Chiquinha Gonzaga, pioneira na fusão de ritmos negros com formas europeias. Clementina lançou em 1966 o primeiro de seus LPs, em que o partido-alto e outras variações do samba desfilavam ao lado do jongo e outros gêneros ancestrais do vale.
Mensurar a exata influência dos vale paraibanos é desafio que não passa pela cabeça dos estudiosos, em face da complexidade do cruzamento de culturas que resultou no samba. No Rio de Janeiro, além dos libertos chegados do vale, os ex-escravos originados da Bahia e seus descendentes deram grande contribuição ao gênero. Muitos deles se reuniam, nas primeiras décadas do século 20, em casas e rodas como a da célebre mãe de santo e quituteira Tia Ciata, na antiga Praça 11, berço dos desfiles de escolas de samba. Em 1917, da casa da baiana Ciata, frequentada por bambas como Pixinguinha e os sambistas Sinhô e João da Baiana, saiu o primeiro samba gravado, Pelo Telefone, registrado por Donga e Mauro de Almeida.
Marcas da herança vale-paraibana no samba foram deixadas por manifestações como o calango. “Em minhas pesquisas sobre partido-alto, observei que no samba tradicional há uma maneira de versar e de improvisar mais sinuosa, mais sincopada, mais repinicada. Acho que isso veio do calango ou desafio calangueado, da região do vale”, afirma Nei Lopes, comparando essa forma ao samba de roda da Bahia, mais “liso”, com menos notas musicais, ritmado com palmas. Entre os partideiros que lembram o calango ele cita alguns famosos, como Padeirinho da Mangueira e Geraldo Babão, do Salgueiro, falecidos, e Tantinho da Mangueira.
*Da Revista Sesc