Segundo matéria de Camila Turtelli, no Estadão, um mês após a Câmara decidir pela revogação da Lei de Segurança Nacional (LSN), a medida ainda segue em vigor. O projeto que altera a legislação elaborada no período da ditadura militar empacou no Senado, que nem sequer definiu um relator para analisar a proposta. O governo é contra a redação aprovada pelos deputados e atua para barrar o projeto. Enquanto isso, a regra segue sendo usada para inibir críticos do presidente Jair Bolsonaro.
Um dos casos mais recentes ocorreu no início da semana, em Trindade (GO), onde um policial militar deu voz de prisão a um professor que se negou a retirar do seu carro uma faixa em que chamava Bolsonaro de “genocida”. O agente de segurança citou como justificativa artigo da LSN que trata como crime “caluniar” o presidente da República, com pena de até quatro anos de detenção. A Polícia Federal, no entanto, não viu ilegalidade e liberou o professor.
Para a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), a ação do policial poderia ter sido evitada caso o Senado já tivesse revogado de uma vez a lei atual. “É estarrecedora e fruto de total abuso de autoridade a prisão do professor em Goiás. Esse despojo da ditadura vem sendo utilizado como medida de intimidação contra os cidadãos que se manifestam pacificamente contra o governo”, afirmou ela, que é autora de um projeto semelhante ao que foi aprovado na Câmara para substituir a LSN. “Vamos cobrar a votação da proposta e levar o assunto ao colégio de líderes na próxima reunião”, afirmou Gama ao Estadão/Broadcast. Desde a aprovação pelos deputados, no dia 4 de maio, o Senado já realizou dez sessões e votou outros 38 projetos.
Entre os motivos apontados por senadores para o freio está a necessidade de se ampliar o debate sobre a mudança. Ao revogar a LSN, a Câmara criou no lugar a chamada “Lei do Estado Democrático”, que tem como pressuposto, entre outros pontos, instituir o crime de golpe de Estado, inexistente na legislação atual nestes termos. O texto, porém, sofre resistência de governistas, que tentam barrar a previsão de prisão de até cinco anos para quem fizer disparos de fake news em massa durante o período eleitoral.
Bolsonaro é alvo de ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que investigam, justamente, a contratação de empresas de tecnologia para disparo de mensagens em massa pelo WhatsApp durante a campanha em que foi eleito, em 2018. O tribunal, no entanto, já rejeitou processos semelhantes por falta de provas.
Aliados do presidente também são contrários a retirar da lei a punição para quem caluniar ou difamar o presidente da República, sob o argumento de que seria uma “carta branca” para Bolsonaro ser chamado de “genocida”. Apesar da pressão governista, o trecho foi revogado pela Câmara.
“O texto aprovado na Câmara vai ter que ser analisado com calma, pois há temas delicados como a inclusão de 14 novos crimes, os chamados ‘crimes contra o Estado Democrático de Direito’”, afirmou o vice-líder do governo, senador Marcos Rogério (DEM-RR), que cita entre os “novos crimes” o compartilhamento de mensagens em massa nas eleições. Ele se diz favorável à revogação da LSN, que chama de “entulho autoritário”, mas pede cautela com o que vai ser aprovado no lugar. “Teve uma nova Constituição em 1988 e a LSN tinha que ser interpretada à luz dela”, disse.
Como mostrou o Estadão no domingo, a ofensiva jurídica de Bolsonaro contra críticos ao governo tem sofrido seguidos reveses na Justiça e no Ministério Público. Ao menos dez pedidos de investigações, quatro delas baseadas na LSN, foram suspensas nos últimos meses. Para especialistas, apesar de derrotadas nos tribunais, as ações servem como uma forma de intimidação a oposicionistas.
O número de procedimentos abertos com base na lei pela Polícia Federal para apurar supostos delitos contra a segurança nacional aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, na comparação com o mesmo período das gestões Dilma Rousseff e Michel Temer.
Oposição
Além de governistas, partidos de oposição também defendem mudanças na proposta aprovada na Câmara. Parlamentares de siglas de esquerda veem uma brecha que, na visão deles, permitiria criminalizar a atuação de movimentos sociais.
Na Câmara, a relatora do projeto, deputada Margarete Coelho (Progressistas-PI), acatou em parte a demanda da oposição e acrescentou uma ressalva para resguardar a manifestação crítica aos poderes e reivindicação de direitos por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou qualquer outra forma de manifestação política. A mudança, porém, não foi suficiente e parlamentares pedem que essa “blindagem” seja mais clara.
Prioridade
Diferentemente do Senado, na Câmara o projeto foi tratado como prioridade e contou com o apoio do presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL). Ao revogar a LSN, os deputados se anteciparam a uma possível decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) para limitar o alcance da legislação atual. Ao menos cinco ações de partidos políticos, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, questionam trechos da regra em vigor, e magistrados já indicaram ver inconstitucionalidades.
Durante as discussões na Câmara, Margareth Coelho chegou a se reunir com o presidente do Corte, Luiz Fux, para pedir que aguardassem uma definição do Congresso Nacional antes de as ações que questionam a LSN serem julgadas. O argumento foi o de que o STF poderia se debruçar sobre uma legislação que já não teria mais validade.
O impasse do Senado para analisar a revogação da LSN é visto com apreensão por ministros do Supremo, mas o discurso é de que o ideal é aguardar uma “solução política”. A preocupação da Corte é que uma decisão agora seja interpretada como mais uma interferência do Judiciário no momento em que o Legislativo ainda discute a medida.
“Esse fato envolvendo um professor em Goiás é emblemático da importância da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (que substitui a LSN), porque a livre manifestação do pensamento é um direito constitucional, é um dos pilares da democracia”, disse Margareth Coelho ao Estadão/Broadcast Político, que disse caber a ela agora apenas aguardar o avanço do seu projeto no Senado.
Procurado, o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não respondeu aos questionamentos da reportagem.
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