Luís Costa Pinto*
“Criamos um monstro”, costumava dizer o ex-procurador-geral da República e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal José Paulo Sepúlveda Pertence, morto a 2 de julho deste ano, sempre que desejava iniciar uma conversa sobre as imperfeições do Ministério Público Federal. Ao longo dos anos, tais imperfeições foram acentuadas pelos abusos praticados por procuradores e subprocuradores da República contra a própria instituição. Sepúlveda Pertence foi um dos integrantes de proa da Comissão Affonso Arinos, instituída pelo então presidente José Sarney para traçar os contornos básicos a partir dos quais os constituintes trabalhariam. Um dos raros pilares pouco modificados pela Assembleia foi justamente o do MPF, para desgosto posterior de um dos seus idealizadores.
Sigmaringa Seixas (morto em janeiro de 2019), advogado, deputado constituinte pelo Distrito Federal, dileto amigo de Pertence e também do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, usava do mesmo desdém arrependido para se referir à atrofia que desfigurou a Procuradoria Geral da República, fazendo com que seus integrantes passassem a se crer semideuses inimputáveis e acima da capacidade de regramento e enquadramento pela Constituição que têm de jurar obedecer ao passarem em rígido concurso público. O mesmo dizem do MP ex-constituintes como Nélson Jobim (advogado, ex-ministro da Justiça e ex-ministro do STF) e José Genoino (professor, ex-deputado federal e ex-presidente do PT).
Ou seja, urge mudar o Ministério Público Federal e, consequentemente, a Procuradoria Geral da República. É a PGR, na figura do procurador-geral (ou procuradora-geral) que comanda o MPE em consórcio com os Conselhos da carreira – CNMP, Conselho Nacional do Ministério Público e CSMP, Conselho Superior do Ministério Público. A revolução que está por ser feita dentro do MP, ao contrário do que ocorre em processos políticos, é para fazer com que procuradores e subprocuradores da República voltem a atuar dentro dos limites da Constituição de 1988 e da Lei Complementar nº 75 de 1993, conhecida como Lei Orgânica do Ministério Público.
Assoberbadamente ampla, complexa como um polvo de 16 tentáculos, a Lei Orgânica confere aos titulares desta carreira de Estado poderes para se imiscuir em praticamente todos os negócios públicos e a se portarem como fiadores da transparência de vasta gama de negócios privados. Não é exagero dizer que o Ministério Público pode travar ou fazer deslanchar indicadores econômicos, desanuviar ambiente de negócios e acordos ou arranjos políticos.
Ciosos da complexidade e envergadura do poder que detinham, foi exatamente isso a que se dedicaram com denodo e por caminhos surpreendentemente inusitados ex-procuradores-gerais como Antônio Fernando de Souza (denúncia do “mensalão”, relato de crimes que jamais ocorreram), Roberto Gurgel (julgamento da Ação Penal 470, o “mensalão”) e Rodrigo Janot (associação com atos ilícitos e inconstitucionais praticados pelos procuradores de Curitiba na “Operação Lava Jato). A trinca, formada por próceres de um grupo que se autodenominou “tuiuiús” (ou “jaburu”, ave típica do Pantanal que tem por característica inflar o papo para afugentar os adversários e predadores), perverteu a ação da Procuradoria Geral fazendo-a focar na ação política e fez com que toda a instituição flertasse com o risco ao praticar o laissez-faire na maioria dos ramos de atuação do Ministério Público. A perversão pelo poder terminou atrofiando o comando da instituição. Em razão disso, pariu-se em Curitiba a aberração lavajatista.
A ascensão da personagem nefasta e perversa de Jair Bolsonaro à Presidência da República nos pôs ante a iminência de o modelo Lava Jato vingar, destruir os muros de proteção da Democracia e de contenção dos aventureiros despóticos e autoritários e demolir o Estado de Direito. Se as engrenagens do lavajatismo tivessem logrado êxito sob Bolsonaro, na Casa de Máquinas do Ministério público, onde são moídas reputações e biografias com desfaçatez e sadismo, não haveria juízes no Supremo Tribunal Federal em abril de 2021 com a coragem de voltar atrás em decisões pretéritas e devolver os direitos políticos de Luiz Inácio Lula da Silva e anularem as sentenças injustas e viciadas impingidas a ele pelo ex-juiz suspeito Sérgio Moro.
A vitória redentora de Lula foi a derrota humilhante do modelo lavajatista urdido nos porões do Ministério Público, e ela só se deu porque, desavisadamente e antagonicamente contra a índole golpista e autoritária que detém, Jair Bolsonaro conduzira ao posto de procurador-geral um garantista dos Direitos: Augusto Aras. “Sabe o tamanho da pica que o espera?”, perguntou Bolsonaro a Aras ao abrir a conversa na qual diria que ia enviar o nome dele ao Senado, em agosto de 2019, para substituir a então procuradora-geral Raquel Dodge. No seu linguajar cafajeste, limitado como sói acontecer aos indivíduos limítrofes, o então presidente questionava o futuro PGR se ele estava pronto para resistir às críticas por deixar a natureza seguir seu curso testando a resiliência das instituições democráticas mesmo tendo um maníaco seviciando-as diuturnamente. Na resposta firme e pretensiosa que certamente deu (e nunca confirmou que a deu, pois também confirmaria a falta de modos e de preparo do ex-presidente), Aras deixou claro que sabia onde se metia. Referia-se à coragem para segurar a lanterna nos porões escuros da Procuradoria Geral; Bolsonaro entendeu que ele falava do tamanho de sua “pica”. Desse mal entendido oportuno chegamos onde estamos.
Em duas semanas, três no máximo, o presidente Lula revelará o nome que designará para o biênio 2023-2025 à frente da Procuradoria Geral da República. A lista de candidatos, que já foi de oito perfis e havia se reduzido para cinco, conta agora com uma trinca de integrantes. Todos são homens. Aras está entre eles e é o mais velho dos três. Profundo conhecedor das mazelas e das deturpações que maus servidores como os procuradores e subprocuradores lavajatistas impuseram ao País, vítima desses algozes que se escondiam numa carreira de Estado para cometer crimes e promover conluios contra empresas públicas e privadas e personalidades dos mundos político e empresarial, nos próximos dias Lula conversará com cada um dos três em separado. Sem dizê-lo, proporá a todos que se unam a favor da instituição “Ministério Público” e da ambição de fazer com que procuradores e subprocuradores atuem na plenitude de suas prerrogativas. Também irá propor que sigam unidos contra a usurpação das prerrogativas da carreira de Estado por usurpadores como Deltan Dallagnol e outros que abandonaram o MP depois de flagrados e investigados pelos órgãos de correição.
O presidente sabe que uma faxina procedimental está em curso nos prédios cilíndricos e espelhados da via N2 em Brasília e, por isso, tende a escolher para os próximo biênio à frente da Procuradoria Geral da República um nome capaz de unir a Casa e reconstruí-la – mimetizando ali a linha-força de sua administração.
Involuntariamente, inadvertidamente, um colunista opiniático da Folha de S Paulo, Hélio Schwartsman, deu musculatura e força a Augusto Aras nesta última semana. Depois de uma coluna especialmente ácida na qual chamou o procurador-geral de “inimigo público” e enumerou-lhe defeitos que o desqualificariam à pretensão de uma recondução, Schwartsman viu um movimento tectônico antes improvável de oito órgãos do Ministério Público Federal e da União se unirem a favor de Aras. A mais surpreendente e eloquente nota a favor do procurador-geral foi divulgada pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a cuja eleição para formação de lista tríplice Augusto Aras nunca se submeteu – nem em 2019, nem em 2021 e nem este ano. “A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) tem, dentre suas finalidades, velar pelas prerrogativas dos seus associados e, em tal condição, vem defender o exercício da prerrogativa constitucional da independência funcional do procurador-geral da República. Em uma sociedade que se pretende democrática, é natural e salutar a crítica (mesmo a mais ácida) aos agentes públicos, exatamente para que se possibilite uma discussão racional sobre os erros e os acertos da atuação funcional.
No caso do Ministério Público, a submissão dos seus membros ao debate público é ainda mais essencial, por conta da autonomia e independência funcionais de que são dotados”, diz a nota da ANPR divulgada na mesma terça-feira em que o matutino do banqueiro Luiz Frias circulava com o artigo de opinião de Schwartsman. E prosseguia a Associação: “De outro lado, a crítica há de ser responsável e balizar-se por critérios racionais e por uma argumentação que permita o diálogo entre os pensamentos diversos, sem a utilização de rótulos ou estigmas. Assim, o fácil discurso que contrapõe “mocinhos e bandidos”, “vilões ou heróis”, “santos ou pecadores” apenas fortalece a polarização que tantos males trouxe ao ambiente do debate público no Brasil, incentivando alguns extremistas até mesmo a atos efetivos de agressão.” Para então encerrar, sem deixar dúvidas da defesa aberta que fazia ao ataque recebido pelo PGR: “O uso, portanto, do rótulo “inimigo público”, ainda que se pretenda limitado ao campo do debate político, mostra-se excessivo, inadequado e prejudicial ao próprio intento que o articulista de A Folha de São Paulo, em sua edição impressa de 18 de julho, anuncia. A discussão sobre os critérios para a indicação para o cargo de Procurador-Geral, por mais acerbo que se pretenda fazer, há de afastar-se do risco de imputação de pechas que apenas contribuam para atingir a honra de um agente público e fortalecer a beligerância inadequada”.
Se procura, por meio de sua designação, união para reconstruir o Ministério Público e colocá-lo de volta nos trilhos institucionais e nos moldes traçados pela Constituição, a fim de matar o monstro do qual reclamavam Sepúlveda Pertence e Sigmaringa Seixas, talvez o presidente Lula esteja assistindo a um improvável e impensável aggiornamento de ex-antagonistas em torno da correta tese de se terminar a faxina anti-Lava Jato para remodelar as bases da instituição.
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