Deus do Céu! Teremos a chance de um dia nos espantar com eventos absolutamente impróprios, inéditos, exóticos? E tudo a serviço de uma gente ainda mais imprópria e mais exótica?
Alberto Mateus, o já famoso porteiro do condomínio Vivendas da Barra, que ligou Jair Bolsonaro ao caso Marielle Franco, afirmou, em depoimento à Polícia Federal, que se enganou nos dois depoimentos à Polícia Civil do Rio.
Em ambos, afirmara que Elcio Queiroz, um dos assassinos de Marielle, chegou ao condomínio no dia 14 de março e pediu para ir à casa nº 58, uma das duas que Bolsonaro tem ali. Aliás, foi essa a anotação que ele fez do livro da portaria. Segundo disse, interfonou duas vezes para a casa de Bolsonaro, e alguém com a voz do “seu Jair” autorizou a entrada de Queiroz.
O horário que aparece em vídeos e registros eletrônicos indicam que Bolsonaro estaria na Câmara.
Quando a informação sobre a fala do porteiro e o registro que fizera em livro veio a público, em reportagem do Jornal Nacional, o Supremo, por intermédio de Dias Toffoli, e a PGR já tinham recebido uma “notícia de fato” do próprio Ministério Público Estadual. A PGR já havia descartado a presença de Bolsonaro no condomínio, sustentando que nada havia a investigar que dissesse respeito ao presidente.
Parece evidente, a esta altura, que Bolsonaro já tinha conhecimento do que dissera o porteiro e contava as horas para o vazamento. Depois da reportagem da Globo, ele gravou um vídeo furioso contra a emissora, numa operação obviamente estudada. O próprio presidente afirmou que tinha sido alertado por Wilson Witzel sobre o aparecimento de seu nome na investigação. O governador do Rio nega.
No dia seguinte à reportagem, as procuradoras responsáveis pelo caso Marielle concederam uma entrevista afirmando que uma perícia — ligeira e de última hora — descartava a possibilidade de o porteiro ter interfonado para a casa de Bolsonaro. Simone Sibilio defendeu que se investigasse a conduta do porteiro.
Pois bem! Não foi o suficiente para Bolsonaro. Ele determinou que Sergio Moro falasse com Augusto Aras para investigar o funcionário. E o chefe da PGR obedeceu. Delegou a tarefa ao Ministério Público Federal no Rio. E a PF abriu um inquérito.
TESTEMUNHA VIRA INVESTIGADA FEDERAL
Temos, então, a insólita situação em que alguém chamado como testemunha numa investigação que pertence à esfera estadual passa à condição de investigado na esfera federal, sem que nem mesmo o inquérito tenha sido concluído no Rio.
Novos tempos, não é mesmo? Imaginem se, no ano que antecedeu o impeachment, o então ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, mobilizasse o procurador-geral da República para investigar aqueles que acusavam Dilma de irregularidades… O mundo viria abaixo. Inclusive na imprensa.
Por óbvio, não estou aqui a afirmar que o porteiro estava falando a verdade. A hora que aparece em alguns registros indica, reitero, que Bolsonaro estaria na Câmara, não em sua casa.
É evidente que a Polícia Civil do Rio, em parceria com o MP Estadual, dispõe de meios para investigar a eventual ação dolosa do porteiro. É uma exorbitância meter a Polícia Federal nessa história. O homem, afinal, era, e ainda é, testemunha no inquérito da Polícia Civil.
A PF a investigar testemunha de inquérito tocado pela Polícia Civil é mais um marco incivilizatório que devemos a este estupefaciente Sergio Moro. O líder da extrema-direita da extrema-direita brasileira continua a gozar de grande prestígio em certas áreas do jornalismo. Estas ainda não dimensionaram o mal que ele faz à própria imprensa.
Digamos que haja uma hipótese remota de que o porteiro não estivesse mentindo; digamos que haja uma hipótese, esta menos remota, ainda que distante, de que tenha confundido a voz de alguém que atendeu o telefone com a de Seu Jair… Bem, que efeito terá provocado, necessariamente, a entrada da Polícia Federal na história?
Trata-se de uma intimidação da testemunha que passou à condição de pessoa investigada e dos próprios investigadores da Polícia Civil do Rio.
Insista-se: ainda que o porteiro tenha mentido de forma deliberada, tal investigação cabe à Polícia do Rio. Caso, no curso da apuração, se chegasse à conclusão de que um crime federal foi cometido e de que o tal porteiro era peça de uma engrenagem para atingir o presidente, bem, nesse caso, a PF entraria em campo. Agindo como agiu, o que se tem é apenas tática de intimidação, sob o comando de Moro e com a conivência de Aras.
FEDERALIZAÇÃO DO CASO MARIELLE
Federalização da investigação da morte de Marielle Franco? Bem, é claro que não faz sentido. O crime cometido pede a apuração na esfera estadual.
De resto, como se vê, o contexto não recomenda tal procedimento, não é mesmo? A morte seria apurada pela mesma Polícia Federal que hoje intimida, pela natureza dos fatos, alguém que ainda e testemunha? Tal pressão se estende também aos policiais do Rio.
*Reinaldo Azevedo/Uol