Com os olhos voltados mais para a caderneta de uma caricatura de política pública de cultura do que para as crônicas humanas extremamente ricas que a cultura brasileira revela, as musas institucionais que chegaram na garupa do neoliberalismo caricaturam as nossas ricas e diversas manifestações, abrindo, como isso, um fosso entre o que se chama de cultura institucional e a sociedade brasileira.
Tudo mudou a partir do tribunal da lei Rouanet da era Collor que, antes mesmo de se avaliar o valor de uma obra de arte, seja na música, na literatura, nas artes cênicas, as artes plásticas, na cultura popular, entre outras, avalia-se a tecnicalidade de uma planilha. Isso é o bastante para dizer que tipo de tragédia uma coisa como essa produz.
Mas o que piora ainda mais o quadro é que esse embuste técnico serviu como padrão gerencial a partir do Ministério da Cultura, hoje, Secretaria Especial de Cultura e em secretarias de cultura de estados e de municípios em que avaliadores de projetos culturais são orientados a, primeiro, analisar com pente fino todo um calhamaço de regras tecnocratas para, se aprovado, o projeto, do ponto de vista gerencial, entrar para a análise rasa e de muito menos importância o conteúdo de um projeto cultural ou de uma obra de arte.
É a total inversão de valores em que o que de fato constitui a emoção está limitado e até dispensável dentro dessa teia de discriminação cultural pela lógica da tecnicalidade.
Na verdade, isso buscou matar a expressão de uma obra, seja de que área for, tirar-lhe todo o conteúdo intelectual para que o alinhamento com o critério técnico se evidencie.
A isso ainda chamam de democracia cultural. É só rever o balanço histórico do que tal ação ou falta dela, tem produzido para concluir que valores estão contidos nessa maçaroca de regras e leis genuinamente tecnocratas e neoliberais.
Com base nisso, não há discussão, debates sobre o papel das políticas públicas de cultura no Brasil, não importando que uma administração seja de direita ou de esquerda, todas seguirão o esperanto institucional de cultura.
Isso não deixou de acontecer, mesmo num momento em que nunca se viu tantas conferências e fóruns Brasil afora para, na realidade, ressoar os clarins da mesmice, a partir de uma central do mercado aonde recursos públicos são destinados à mediocridade tarefeira e à obra de arte é reservado o limbo, numa criação de direitos artificiais em que a verdadeira produção artística, quando muito, recebe resíduo ou migalha de tudo o que acontece em torno do que foi estabelecido como política cultural.
Formas de expressão, pesquisas ou investimento no humano na construção de uma manifestação artística é simplesmente desconsiderado se não apresentar uma amesquinhada planilha que funciona como solução para os gestores e segregação para a arte, sem que haja qualquer espaço para discussão desse verdadeiro absurdo.
Por isso o Brasil vive um momento em que a liberdade criativa nunca foi tão funesta por enfrentar problemas burocráticos nas quatro linhas do jogo institucional, porque nesse universo, a questão central não é a cultura brasileira, mas a barbárie que lubrifica um mundo tosco da chamada gestão cultural.
Por isso urge que a esquerda debata a questão cultural de uma maneira inversa à lógica imposta pelo estatuto do neoliberalismo.
*Celeste Silveira e Carlos Henrique Machado Freitas